Mont Blanc, Fácil e Perigoso
Lá embaixo, agora eu tinha certeza que não passaria mais nenhum aperto com altura e relaxei mais um pouco.Com a diminuição da inclinação e o desaparecimento dos penhascos, aumentei o meu ritmo e quase corria com a cargueira nas costas saltando de pedra em pedra. Cheguei rapidamente onde eu escondera algum equipamento sob as rochas e os coloquei na mochila.
Mais abaixo, uma família de cabritos pastava bem próximo ao caminho e o proprietário do maior par de chifres encarava ameaçadoramente cada alpinista que passava descendo. Aqueles animais já não eram mais nenhuma novidade pra mim, mas mesmo assim não tirei os olhos do maior…
O primeiro túnel era curto e atravessei a passos rápidos, mas no segundo túnel, percebi um caminho que seguia para a esquerda e imaginei que contornaria a montanha por fora. Para matar a curiosidade, principalmente, escolhi este caminho e descobri uma incrível passagem de menos de um metro de largura que seguia colada como um parapeito a uma parede de rocha de quase 90º de inclinação. A névoa que tomava conta do ambiente e me impedia de ver o que havia para baixo a minha esquerda, dava um aspecto mais tenebroso ainda de sem fundo ao despenhadeiro que me acompanhava. De repente, um corrimão de cabo de aço apareceu preso à parede. Era sinal de que o caminho ia estreitar… E estreitou.
Mas chegou e agora eu lembrava que após um deslizamento no meio da trilha eu já estaria praticamente no teleférico.
Comecei a avançar dando os primeiros passos e fui percebendo que o trecho estava escorregadio como sabão. Comecei a apoiar a mão esquerda na parede para buscar algum apoio, mas aquela porcaria que parecia uma rocha cinza escuro tinha a textura de um folheado que se compra em confeitarias e quando eu cravava os dedos, se derretia e virava lama na minha mão. Parado, comecei a sentir meus pés deslizando em direção ao vazio e quando olhei para minhas botas, vi, estarrecido que já havia uma crosta de lama com quase dois dedos de espessura grudada em minha sola, acabando com qualquer propriedade aderente do calçado. Não dava mais para parar, cada passo meu tinha um prazo. Assim que eu apoiava o pé, a contagem regressiva começava e logo eu tinha que posicionar o outro numa saliência mais plana possível para transferir o peso do corpo. Eu me sentia numa escalada em rocha, com as duas mãos buscando agarras lamacentas e posicionando meus pés nos abaulados moles que eu pisava. Se eu estivesse com um par de bastões provavelmente não estaria tão difícil. Pensei em usar o piolet, mas na situação que eu me via, não conseguia nem soltar uma das mãos, quanto mais sacar a picareta que estava presa à mochila. Nessa hora eu realmente não acreditei no aperto que eu estava passando, a poucos minutos do teleférico, já achando que tinha chegado, depois de tudo que eu tinha subido e descido lá em cima. Amaldiçoei cada gota de chuva que continuava caindo e tornava tudo mais difícil. Comecei a bufar e falar sozinho, praguejando, xingando e chamando Jesus. Pode-se saber que realmente um sujeito está assustado quando ele de repente passa a ser religioso. Até me desculpei por enfiar o nome Dele no meio de tanto palavrão.Durante a volta de carro, tive bastante tempo para pensar na escalada, nos riscos que corri, inevitavelmente por estar sozinho, mas também em parte por ter acreditado que uma montanha pode deixar de ser perigosa por ser fácil. É complicado classificar como fácil uma escalada em que você pagará um simples tropeço com a morte, por mais que na maior parte do tempo seja uma caminhada ou uma escalaminhada que não passe de 1° grau. Não aconselho ninguém a fazer esta escalada sozinho, sem dispor da segurança de um parceiro na outra ponta de uma corda. No Mont Blanc, quando eu estava com meus crampons e botas plásticas, o comprimento do meu pé quase dobrava de tamanho, estes e outros detalhes, vão complicando mesmo as mais fáceis das tarefas. Outra consideração quanto a qualquer comentário sobre ser uma escalada fácil.
Se você está pensando em escalá-lo, lembre que é uma ESCALADA fácil, para um escalador, alpinista. Não vá querer aprender lá. Agradeci por ter alguma habilidade em escalada em rocha, e que usei até na trilha! Se você não estiver acostumado com alturas vertiginosas e rocha, o Mont Blanc não é uma trilha! Uma outra coisa que posso deduzir também é que a grande quantidade de alpinistas lá se justifica principalmente por ser uma grande e bela aventura. Uma montanha realmente maravilhosa. As vezes também tinha a impressão de que tinha sido personagem de videogame num grande jogo de ação, saltando de uma pedra para outra, entre blocos rolantes e me equilibrando em bordas estreitas.
No Mont Blanc, eu pude me lembrar de algumas lições que eu aprendi no karatê, mas que temos facilidade pra esquecer: Nunca subestime o que vai encontrar pela frente e tenha sempre a humildade do principiante.