Mas ainda não tinha acabado. Otimista que eu estava, tinha mandado até uma mensagem de texto pelo celular para o casal tcheco avisando que eu chegaria em 2 horas. Mas eu precisava organizar a mochila cargueira que estava no armário do refúgio Tetê Rousse e depois de cruzar o último trecho de neve, saquei os crampons dos pés e troquei de botas para terminar a descida.
Mas o pedacinho entre o Tetê Rousse e o refúgio menor lá em baixo ainda me pareceu bem mais traiçoeiro na descida do que quando subi. Novamente eu não tinha como evitar tomar conhecimento da altura e senti muita falta de um par de bastões para me ajudar a equilibrar nos trechos escorregadios que eu transpunha com muito cuidado. Novamente usei meu piolet como apoio.
Lá embaixo, agora eu tinha certeza que não passaria mais nenhum aperto com altura e relaxei mais um pouco.
Com a diminuição da inclinação e o desaparecimento dos penhascos, aumentei o meu ritmo e quase corria com a cargueira nas costas saltando de pedra em pedra. Cheguei rapidamente onde eu escondera algum equipamento sob as rochas e os coloquei na mochila.
Mais abaixo, uma família de cabritos pastava bem próximo ao caminho e o proprietário do maior par de chifres encarava ameaçadoramente cada alpinista que passava descendo. Aqueles animais já não eram mais nenhuma novidade pra mim, mas mesmo assim não tirei os olhos do maior…
Mas agora eu sentia alguns pingos de chuva, que iam se tornando mais freqüente à medida que eu descia.
Mais eu apressava o passo, e chegava na estação Nid d’Aigle, onde muitos iriam parar para aguardar o trem.
Eu precisava continuar descendo até o teleférico.
O primeiro túnel era curto e atravessei a passos rápidos, mas no segundo túnel, percebi um caminho que seguia para a esquerda e imaginei que contornaria a montanha por fora. Para matar a curiosidade, principalmente, escolhi este caminho e descobri uma incrível passagem de menos de um metro de largura que seguia colada como um parapeito a uma parede de rocha de quase 90º de inclinação. A névoa que tomava conta do ambiente e me impedia de ver o que havia para baixo a minha esquerda, dava um aspecto mais tenebroso ainda de sem fundo ao despenhadeiro que me acompanhava. De repente, um corrimão de cabo de aço apareceu preso à parede. Era sinal de que o caminho ia estreitar… E estreitou.
Bem no meio da passagem, cruzei pelo furo na rocha que ligava a parte de fora ao túnel do trem e pensei que seria mais provável que servisse para o indivíduo que mudasse de idéia e quisesse seguir por dentro do que o inverso. Continuei por fora até retornar outra vez para os trilhos ao término do túnel.
A descida pela linha férrea foi meio chata, principalmente porque agora a chuva caía com mais força e me deixava encharcado e pesado. O cascalho grosso não era o melhor terreno pra descer e o início da trilha pareceu demorar mais do que deveria.
Mas chegou e agora eu lembrava que após um deslizamento no meio da trilha eu já estaria praticamente no teleférico.
Quando este deslizamento apareceu, fiquei preocupado. Seria este mesmo o caminho por onde passei? Quase não havia lugar seguro e que não estivesse enlameado para se apoiar o pé. A trilha virava uma linha torta e lambuzada que escorregava rente à parede por alguns pontos mais planos onde talvez eu conseguisse andar. Provavelmente pela chuva e alguma quantidade de gente pisoteando na volta. Tive que olhar para o lado direito onde agora eu via o barranco sumindo nas nuvens lá embaixo.
Comecei a avançar dando os primeiros passos e fui percebendo que o trecho estava escorregadio como sabão. Comecei a apoiar a mão esquerda na parede para buscar algum apoio, mas aquela porcaria que parecia uma rocha cinza escuro tinha a textura de um folheado que se compra em confeitarias e quando eu cravava os dedos, se derretia e virava lama na minha mão. Parado, comecei a sentir meus pés deslizando em direção ao vazio e quando olhei para minhas botas, vi, estarrecido que já havia uma crosta de lama com quase dois dedos de espessura grudada em minha sola, acabando com qualquer propriedade aderente do calçado. Não dava mais para parar, cada passo meu tinha um prazo. Assim que eu apoiava o pé, a contagem regressiva começava e logo eu tinha que posicionar o outro numa saliência mais plana possível para transferir o peso do corpo. Eu me sentia numa escalada em rocha, com as duas mãos buscando agarras lamacentas e posicionando meus pés nos abaulados moles que eu pisava. Se eu estivesse com um par de bastões provavelmente não estaria tão difícil. Pensei em usar o piolet, mas na situação que eu me via, não conseguia nem soltar uma das mãos, quanto mais sacar a picareta que estava presa à mochila. Nessa hora eu realmente não acreditei no aperto que eu estava passando, a poucos minutos do teleférico, já achando que tinha chegado, depois de tudo que eu tinha subido e descido lá em cima. Amaldiçoei cada gota de chuva que continuava caindo e tornava tudo mais difícil. Comecei a bufar e falar sozinho, praguejando, xingando e chamando Jesus. Pode-se saber que realmente um sujeito está assustado quando ele de repente passa a ser religioso. Até me desculpei por enfiar o nome Dele no meio de tanto palavrão.
Mas não parei de avançar e alcancei uma parte mais segura, plana e larga, ainda no meio do deslizamento. Pude relaxar novamente e achei graça da minha situação. Olhei para baixo, pra ficar ciente do que aconteceria caso eu escorregasse e não vi nada a não ser uma ribanceira por pelo menos 50 metros até a névoa branca lá em baixo. Aquelas nuvens até que me davam um certo conforto, talvez houvesse alguma vegetação oculta nas brumas, apesar da impressão de abismo sem fim. Que lugar dos infernos era aquele que todo caminho beira um precipício! Eram os Alpes.
Retomei minha tarefa de avançar horizontalmente pelo deslizamento, achando que começaria a ficar mais fácil, mas me enganei. Logo ficava escorregadio, sem apoio e estreito novamente. Começava tudo de novo e outra vez soltei vários palavrões enquanto cravava com força minhas unhas naquela rocha estranha que derretia, tentando aliviar o peso dos pés que deslizavam nos pequenos apoios enlameados. Lembrei-me de um brasileiro que desapareceu no Mont Blanc há alguns anos e vi como seria fácil também acontecer o mesmo comigo. Felizmente estou aqui escrevendo este relato agora. Tinha alcançado a trilha outra vez, finalmente, escapando do pior e com a adrenalina correndo a toda nas veias, desandei a correr.
Eu já estava encharcado, com as botas de couro pesando como chumbo e os joelhos doloridos, mas a vontade de terminar me impelia a correr pela trilha.
Quando vi o teleférico, desabei por dentro, apesar de manter ainda um caminhar mesmo que de zumbi. Passando na frente de um restaurante colado no teleférico, pude ver meu reflexo nos vidros da janela com uma imensa mochila nas costas perambulando ali na chuva com aspecto de total esgotamento.
Vendo também aquela cena, um biker que também estava ali do lado de fora com mais dois amigos cobertos de lama, bicicletas e equipamentos de downhill, e brincou comigo:
– No fun…
Gargalhadas de todos nós que estávamos naquela situação e que realmente não seria nada divertida para a maioria.
No teleférico ainda encontrei o russo e me vendo exclamou com o seu inglês pobre: “você… amigo…”.
Em Lês Houches, Lubica esperava cada carro aéreo que descia apinhado de alpinistas imundos já que eu estava atrasado duas horas em relação ao horário que previ na mensagem que enviei via celular antes que a carga da sua bateria se esgotasse.
Após um banho quente nas duchas da estação do teleférico, os tchecos me levaram até seu “acampamento”. Uma cabana ao lado de um teleférico sem funcionamento. Na pequena varanda, encontrava-se colchonetes, fogareiro e comida! Bedrich preparara um panelão de macarrão com molho de tomate e frango assado desfiado. Comi a panela inteira até quase explodir e tomei quase um litro de chá. Não podia ter tido melhor recepção.
Durante a volta de carro, tive bastante tempo para pensar na escalada, nos riscos que corri, inevitavelmente por estar sozinho, mas também em parte por ter acreditado que uma montanha pode deixar de ser perigosa por ser fácil. É complicado classificar como fácil uma escalada em que você pagará um simples tropeço com a morte, por mais que na maior parte do tempo seja uma caminhada ou uma escalaminhada que não passe de 1° grau. Não aconselho ninguém a fazer esta escalada sozinho, sem dispor da segurança de um parceiro na outra ponta de uma corda. No Mont Blanc, quando eu estava com meus crampons e botas plásticas, o comprimento do meu pé quase dobrava de tamanho, estes e outros detalhes, vão complicando mesmo as mais fáceis das tarefas. Outra consideração quanto a qualquer comentário sobre ser uma escalada fácil. Se você está pensando em escalá-lo, lembre que é uma ESCALADA fácil, para um escalador, alpinista. Não vá querer aprender lá. Agradeci por ter alguma habilidade em escalada em rocha, e que usei até na trilha! Se você não estiver acostumado com alturas vertiginosas e rocha, o Mont Blanc não é uma trilha! Uma outra coisa que posso deduzir também é que a grande quantidade de alpinistas lá se justifica principalmente por ser uma grande e bela aventura. Uma montanha realmente maravilhosa. As vezes também tinha a impressão de que tinha sido personagem de videogame num grande jogo de ação, saltando de uma pedra para outra, entre blocos rolantes e me equilibrando em bordas estreitas.
No Mont Blanc, eu pude me lembrar de algumas lições que eu aprendi no karatê, mas que temos facilidade pra esquecer: Nunca subestime o que vai encontrar pela frente e tenha sempre a humildade do principiante.
Agradeço estes e outros ensinamentos a meu mestre Teruô Furusho, que faleceu alguns dias depois que retornei desta viagem.