Mont Blanc

Mont Blanc, Fácil e Perigoso

Retornando

E não é que numa das paradas pra descanso na descida eu me lembrei das pilhas da lanterna? Infelizmente não tive essa idéia no cume. Mas pelo menos agora eu poderia continuar a tirar fotos.No meio da grande rampa, eu descia meio esquiando e alcancei um alpinista, que reconheci lá do refúgio. Era o que estava consertando o crampon. Ele me saudou, puxou um pouco de papo perguntando de onde eu era, disse que era da Rússia e logo que teve oportunidade, perguntou se eu possuía água. Desta vez eu ainda tinha uma garrafa quase cheia e faltava pouco para chegar no Goûter. Compartilhei minha água com ele. Depois de umas boas goladas, o russo perguntou se poderia dar um pouco a seu filho que vinha descendo logo atrás. Concordei e, quando o jovem chegou, matou mais uns goles. Reparei em suas roupas e elas curiosamente pareciam roupas normais. Calças jeans, casacos de nylon. Se não fosse pelos crampons e piolet, eles pareciam perfeitamente transeuntes na noite de Teresópolis… Descaradamente, o russo perguntou novamente se podia oferecer minha água a seu amigo que vinha por último. Meio sem saber o que dizer, permiti, com a certeza de que deixariam pelo menos um pouco pra mim na garrafa.
Esta, quando retornou, não tinha nem um dedo de água.
Visivelmente renovado, o trio meteu o pé e desceu batido.

Quanto a mim, parece que só porque me dei conta que não tinha mais água, comecei a sentir uma sede louca. Junto com a sede veio o esgotamento. A última parte da pernada até o Refúgio foi longa. Mas quando lá cheguei, ocupando um pedacinho do banquinho de madeira, fui recebido pelo russo com uma enorme caneca de chá quente. Pensando bem, os cara foram legais e souberam retribuir minha camaradagem. Eles deviam estar desesperados sem água e eu sabia o que era isso.

Refugio Gouter
Refugio Gouter

Agora eu esperava minhas roupas secarem ao sol, sentado no banquinho e voltava a observar o movimento. Também namorava uma velha corda de 10 mm que era usada pra amarrar umas armações metálicas e imaginava como ficaria bem somente um ou dois metros dela como cabo solteiro para a segurança nos cabos de aço… Era por volta de 11 da manhã e eu decidia o que fazer. Não queria encarar mais 4 horas de descida sozinho para o Refúgio Tete Rousse pela parte que seria a mais complicada e perigosa, no cansaço que eu me encontrava, sem almoçar e sem dormir direito, depois de quase dez horas de escalada. Decidi comer alguma coisa no refúgio, dormir aquela noite ainda ali e descer no dia seguinte pela manhã.

Enquanto eu me secava ao sol, e consertava com fiapos de nylon de uma velha corda o meu dispositivo caseiro contra o acúmulo de neve dos meus crampons feito de câmara de ar e arames, reparei em um trio de mulheres que conversavam em inglês e francês com outros alpinistas. Uma delas me chamou a atenção pelas belas pernas musculosas que a calça azul justa de lycra deixava aparecer.

Quando minha roupa e botas secaram, fui para o interior do refúgio procurando comer. Foi aí que aconteceu um episódio bem desagradável.

Sentei em uma grande mesa vazia, no canto, junto à janela para observar o espetáculo que as nuvens proporcionavam, enquanto eu esperava para ver se alguém faria alguma refeição ou se viriam me atender. No dia anterior, eu havia visto escrito no quadro negro que o cardápio era espaguetti por 15 euros. Eu havia achado um absurdo por um prato de macarrão, mas no dia seguinte, já sem nenhum miojo, biscoito ou coisa parecida e com uma fome de leão, eu já achava bem razoável pagar isto por uma refeição.


AlmoçoO pessoal da cozinha começou uma movimentação, alguém começou a desenhar num quadro verde com giz branco, vários retângulos. Em cada retângulo, uma lista de palavras e no final, um grande número. Nove, Dez… Imaginei que aquilo fosse algum tipo de cardápio com preços. Até que estava relativamente barato. As alpinistas que estavam lá fora, adentraram então o salão e, um pouco desconcertadas, se sentaram na mesa onde eu estava. Eram 18 horas e o salão começava a encher para o jantar. A menina que estava mais próxima a mim, começou a puxar assunto em inglês e me distrai com a conversa. Ela disse que elas eram de Londres e que ela tinha morado três meses em Belém do Pará para um estágio de biologia. Sabia também algumas palavras em português. A inglesa perguntou quem era o meu guia e eu lhe disse que estava sozinho e, por este motivo, apreensivo com minha descida. A menina então ofereceu para que eu me juntasse ao trio. Elas escalavam juntas e tentariam o cume naquela madrugada com retorno previsto para 9 ou 10 horas da manhã ali no Gouter para descer para o Tete Rousse. Quando percebi, alguém já havia trazido pratos para todos na mesa e eu perguntei à essa inglesa como eu fazia para pedir comida para mim. As meninas fizeram como que para eu não me preocupar e me deram um prato e talheres. Logo fomos servidos com um prato contendo uma fatia de queijo Rockford pra cada um. Quase nem mastiguei o meu. Mas quando a sopa começou a ser servida, parece que chegou mais alguém para sentar à mesa e não havia lugar. Foi então que uma francesa de estatura baixa começou a contar as pessoas na mesa e falando comigo em francês mesmo, perguntou o meu nome lá do outro lado da mesa. Foi, voltou e começou a gritar para que eu saísse de lá.

– Go out! Go out! – Gritava, gesticulava e apontava pra mim.
Completamente atordoado, perguntei se era comigo, perguntava o porquê e tentava entender o que acontecia. Por fim, depois que todos no salão já assistiam a cena, saí da mesa conforme a mulher ordenava. Ela me levou até o quadro verde e onde consegui entender que eram nomes. Ela tentava mostrar que meu nome não estava lá.
Eu repetia “I didn’t know”.
A mulher me mandou falar com um homem que, de dentro da cozinha, me atendeu muito nervoso também.Perguntou onde eu havia dormido e respondi que eu dormira em cima da mesa. Ele então me cobrou 25 euros por esta pernoite ao que eu retruquei:

– 25 euros para dormir 4 horas em cima de uma mesa?
O homem não recuou e quando perguntei quanto seria o jantar, me cobrou mais 25 euros. Naquela hora eu fiquei bem irritado, mas pra não prolongar mais o barraco, paguei.
Perguntei se podia continuar o jantar e o francês mandou eu perguntar à mulher. A mulher então me colocou numa pequena mesa com dois franceses que trataram logo de puxar assunto para amenizar o clima. Um empregado então trouxe a refeição.
Primeiro o prato com três fatias de queijo – a única vantagem disso tudo foi comer uma fatia numa mesa e outra na outra-, sopa, uma tijela de arroz amarelo e um prato com seis fatias de presunto e molho.
Quase oitenta reais num prato de sopa, arroz, queijo e presunto…
Enquanto eu comia, eu pensava numa forma de falar alguma desaforo para aquela mulher grossa, mas eu não conhecia muitos em inglês. Queria chamá-la de sem-educação. Mas achei melhor esperar antes de fazer alguma grosseria em retribuição. Ao término da minha comida, retornei ao homem e perguntei a ele se eu precisaria pagar para dormir no banco de madeira do lado de fora.
O homem ficou meio constrangido e disse que eu poderia dormir na mesa outra vez e quando fosse duas da manhã, quando o pessoal levantasse para escalar, eu poderia procurar uma cama vazia dentro do alojamento. Respondi que eu não tinha mais dinheiro, mas ele me disse que eu já havia pago.
JanelaO resto do meu tempo então foi gasto com fotos do por do sol e cochilos, debruçado sobre a mesa.
Com o cair da noite, o recinto foi ficando mais tranquilo e vazio e, aos poucos, um e outro foi se deitando.
Aquela noite foi mais fria e quando deu duas da manhã, fui acordado novamente pela algazarra dos alpinistas. Levantei da mesa e encontrei uma cama desocupada no dormitório da outra casa. Naquela noite, dormi confortavelmente até as 9 horas da manhã.
Quando acordei, o tempo havia virado, estava frio, com vento e muitas nuvens.
Decidi iniciar minha descida sozinho mesmo antes que o clima piorasse.
Enquanto alguns usavam fortes equipamentos com absorvedores de impacto, próprios para a técnica de via ferrata, ou seja, de cabos de aço, eu ia clipando o mosquetão da minha solteirinha fininha de 6 mm encontrada no chão do abrigo, mais como uma segurança psicológica do que qualquer coisa.
Foi então que comecei a presenciar desmoronamentos assustadores de rochas. Em vários pontos do caminho, grandes blocos do tamanho de engradados, oscilavam equilibrados ao apoiar um pé. Na faixa de neve que acompanhava o caminho pela esquerda, rolou um grande bloco que foi se chocando com outros e se partindo em outros menores, igualmente velozes e mortíferos.
Os crampons davam firmeza nos pedaços cobertos por neve, mas em compensação, nas desescaladas em rocha era preciso muito cuidado para não cometer nenhum erro. O problema da descida agora era se concentrar para não ficar abalado com a altura, já que o tempo todo você fica virado para baixo e não tem como não olhar.
Num certo ponto com mais espaço e dois possíveis caminhos, esperei por outros grupos para analisar as dificuldades de cada possibilidade. Enquanto eu aguardava e observava os outros alpinistas acima de mim, presenciei um senhor de feições orientais tropeçar, cair e ser salvo pela corda segura pelo guia antes que ele terminasse de rolar rumo a um penhasco de 400 metros, se não acertasse alguém abaixo também.
Outras pessoas flagaram o incidente e, por meio minuto, parece que todo mundo parou, inclusive o vento, e ninguem proferiu uma única palavra. A gorjeta desse guia deve ter sido gorda…
DescidaMais um violento desmoronamento, desta vez na faixa de neve ao lado direito do caminho, justo a que teria que cruzar horizontalmente mais abaixo. Foi lá de cima que eu vi a quantidade de rastros na neve deixados pelos desmoronamentos e que afunilavam no meio da passagem. E foi lá embaixo, cara a cara com a pequena e perigosa travessia, que eu desejei ter uma corda maior para me clipar no cabo de aço que acompanhava o caminho mais distante – uns 4 ou 5 metros. Tava explicado. A passagem não era tão difícil, o cabo não estava ali por causa de algum simples escorregão e sim no caso dos projéteis atingirem algum alpinista. Talvez ele se salvasse apenas com fraturas, ao invés de ser arremessado junto com a rocha.
Para alguém cruzar, o último que atravessava, ficava vigiando do final do lado de lá, enquanto o próximo a atravessar aguardava sua vez, também vigiava do lado de cá, caso algum bloco rolasse e avisava o que estava no meio do caminho.
Na minha vez, atravessei rapidamente, com algumas pausas para vigiar os desmoronamentos, olhando para o alto.
Na rampa final, chegando no Tete Rousse, depois de três dias tensos, exclamei:

– Escapei… Escapei!

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