Lençóis Maranhenses

Como não pular carnaval no Nordeste

Santo Amaro

Depois de Quebrada dos Britos, as dunas e as lagoas eram todas de proporções bem maiores. No alto de uma alta duna me surpreendi ao olhar pro norte e conseguir avistar uma faixa verde de mar! Cruzando uma grande lagoa cristalina fiquei feliz, mais ainda, ao identificar uma tartaruga paradinha no fundo. Mas já era quarta feira e eu estava totalmente atrasado no meu planejamento. Queria caminhar o máximo que pudesse e, como levei praticamente dois dias para caminhar estas 11 horas até Baixa Grande, a metade do percurso, pensei que naquele dia pudesse caminhar de 12 a 14 horas. Já me conformara em parar só lá pelas dez da noite ou meia noite.

DSC00751Escureceu e fazia uma noite agradável, mas atrás e a esquerda comecei a ver uns relâmpagos gigantes, o céu estava negro novamente e o festival de luzes lembrava o bombardeio de Bagdá. Lá vamos nós outra vez. Como uma barata tentando fugir do inevitável pisão, lá estava eu quase correndo pelas dunas pra tentar evitar a chuva. Já faziam 9 horas de caminhada e ante aquela nova possibilidade de tempestade, meu cansaço e dores pareciam ter desaparecido. Caminhar mais uma vez na chuva não seria problema, minhas coisas estavam protegidas desta vez, mas o chato seria armar barraca embaixo de temporal. Depois percebi que o tempo ruim não se aproximava e acabei relaxando. Atravessei um enorme charco e comecei a ver uma claridade na direção de onde o sol sumira. Já eram oito da noite deduzi que a luz era de São Luiz. No alto de uma grande duna consegui avistar um luzinha mais próxima, mas saindo um pouco da direção que eu ia. Resolvi que ali seria um bom lugar para pegar meus mapas e tentar me situar. Aproveitando que o trecho seguinte seria um grande charco novamente, a preguiça bateu e resolvi parar por ali mesmo. Se na pior das hipóteses, Santo Amaro fosse aquela luz fora da minha rota alguns graus, não estaria tão longe e, depois, de dia, naquela última grande duna, eu poderia tentar descobrir melhor onde eu estava e por onde deveria ir. Resolvi que iria acordar as seis da matina para terminar de andar aquele trecho final até alguma cidade.
Mas por via das dúvidas, comi um miojo que enchi de farofa, mas deixei um último, caso no dia seguinte eu ainda não chegasse a lugar algum.
Coloquei o celular pra despertar as seis.
Mas alguns minutos antes das seis, acordei com a barraca enlouquecida pelo vento. Cheguei a ficar preocupado se ela aguentaria Como seria possível um vento ali, maior do que aquele que eu já tinha enfrentado no Aconcagua? O agravamento foi que, desleixadamente, a armei ela de lado para a direção do vento e agora eu tentava segurar a lona que ameaçava levantar deixando tudo dentro com uma camada branca de areia. Maldita hora que não acampei na base da duna. Não ia haver nenhum nascer de sol ali daquele jeito mesmo. Fui xingando assim e adormeci com o braço enrolado na lona da barraca para que o vento não fizesse estrago maior. Dormi duas horas até a tempestade passar.
Restava agora arrumar a mochila tentando tirar o máximo de água e areia que eu pudesse das minhas coisas. Mas era quase impossível. A areia fina molhada grudava em tudo. Parecia que eu tinha tomado um caixote no mar de roupa e com a mochila nas costas. Agreguei desta forma mais um quilo ou dois de água e areia à minha bagagem parti rapidamente, pois novamente ameaçava chover. Na primeira lagoa, me pus de joelhos e inclinei o corpo para frente para tentar tirar a areia das alças da mochila e evitar machucar-me com o atrito. Tirei também a areia dos punhos dos bastões e de minhas mãos. Ficava bem melhor caminhar assim. Comecei a me aproximar de uns trechos de vegetação e de um lago gigante com alguns quilômetros. Eu estava perto, Santo Amaro fica às margens de um grande lago, segundo o croqui da revista. Mas comecei a me enrolar, não sabia se tinha chegado ao lago à esquerda ou à direita de Santo Amaro. Tentei subir numa grande duna e percebi que aquele lago não era tão fundo e parecia ter alguns trechos sem água. Seria aquele mesmo ou eu teria que continuar a seguir cegamente os 310 graus indicados na bússola. Eu teria saído tanto da rota a ponto de Santo Amaro estar na direção da luz que eu vira na noite anterior?
Como havia mais cidades ou lugarejos para a esquerda, resolvi abandonar a direção da bússola naquele momento e seguir para oeste ou sudoeste agora, margeando aquela que eu acreditava ser a grande lagoa. DSC00825Mas como agora começava a surgir muita vegetação, teria que me preocupar com o melhor caminho sempre. Avistei então marcas de pneu e resolvi segui-las. A essa altura eu via cavalos e de repente vi dois peões montados arrebanhando os animais. Fiquei feliz em poder colher informações naquele momento mais crítico. Um peão confirmou a direção e dali à uma hora de caminhada eu chegava a Santo Amaro depois de caminhar entre a margem da lagoa e uma densa faixa de vegetação que imaginava ser difícil de cortar caso eu não tivesse chegado no local que cheguei.

Santo amaro é uma cidadezinha muito pitoresca, lá o transporte é feito pelas toyotas e quando cheguei, a primeira coisa que eu perguntei era sobre como voltar pra São Luiz, pois já eram 14:00 h e eu não queria passar mais uma noite lá, que quase parecia uma cidade fantasma. Informaram-me que um micro-ônibus da empresa local acabara de partir e que eu não acharia mais transporte naquele dia. Comecei a ficar triste e procurei algum tipo de pensão no centro da cidade – uma praça. Estava há quatro dias somente comendo barra de cereais, castanhas de caju, frutas silvestres e miojo. Achei um “restaurante” e pedi o cardápio. As opções eram frango e peixe e resolvi pedir um peixe. Pra beber, imaginei que pelo menos tivesse o regionalmente conhecido guaraná Jesus, mas tinha somente água.
Pedi uma jarra gelada. Quando resolvi perguntar se realmente não havia jeito de eu sair da cidade hoje. Descobri que o senhor que estava sentado na porta esperava por uma toyota para São Luiz! Informaram-me que eu teria que reservar a passagem no açougue e sai correndo procurando o estabelecimento, que estava fechado quando cheguei. Voltei correndo e já encontrei a toyota estacionada na frente do restaurante. Paguei cinco reais pelo peixe assim mesmo, pois a mulher já o fritava, engoli a grandes goles o máximo de água que pude e revirei minha mochila procurando a carteira com dinheiro que estava lá no fundo do saco estanque. Depois que o rapaz acomodou-a no teto do veículo, procurei um lugarzinho no último banquinho apertado da caçamba e lá fomos nós. Pelo caminho ainda colheram alguns passageiros mais que lotaram completamente a toyota. Havia 12 pessoas na parte traseira, uns três ou quatro na frente e o carro corriam demais pelas estradas de areia que rasgavam a mata densa. Eu que estava bem na beirinha, não conseguia descobrir que tipo de força misteriosa me mantinha ainda em cima do veículo em meio a tanto sacolejo, buraco, guinadas eu já imaginava como fazer entalado ali caso aquela joça virasse. Mas cheguei a admirar a habilidade do condutor, a toyota subia ladeiras íngremes em uma estrada de areia fofa carregada daquele jeito e atravessava rios com água que quase molhava agente. Em certos momentos o balanço parecia o de um barco em mar de ondas grandes. Num calombo em alta velocidade, vi por alguns instantes, todos os passageiros ali daquela parte de trás flutuando como astronautas e minha cabeça foi no teto de lata fazendo um barulhão. Na ponta oposta à minha, uma velhinha bem enrugadinha, encurvada de cabelos branquinhos e compridos, com seus 70 anos sacudiu violentamente pelo ar e caiu descabelada. De repente a senhora deu um berro e desandou a falar dando a entender que xingava o motorista até a sua 3ª geração. Sua voz era anasalada e seu sotaque mais parecia um outro dialeto, visto que incrivelmente não consegui distinguir nenhuma palavra das dezenas de xingamentos que ela proferiu. Não sei se foi o que ela disse, a forma transtornada como gritava, ou se mais ninguém entendeu também, mas a gargalhada foi geral daquela cena hilária. Deu-me certa pena da senhora que já trazia o braço esquerdo coberto por um casaco para proteger do sol e da vegetação que a chicoteava no lado de fora. Alguém disse para consolá-la:
– Não liga não tia, é que o motorista tem o pé torto pra dentro. – Mais gargalhadas.
Ainda levei uma chibatada na costela de uns galhos numa parte mais fechada e, alguns rios fundos depois, estávamos rodando um trecho da estrada principal de asfalto. Aquela uma hora e quarenta naquela toyota tinha sido realmente uma aventura também. Quando o motorista desembarcou, vi horrorizado que ele tinha os pés tortos realmente, com as pontas dos dedos totalmente viradas uma para outra. Não conseguia nem andar direito, como o diacho conseguia dirigir daquele jeito?

Ali na beira da estrada esperamos uma van para fazer a segunda metade do trecho de asfalto agora.

Em São Luiz, tive sorte de ter recebido acolhida pela família de Rejane, uma amiga do Rio. Pude lavar minhas roupas úmidas e cheias de areia e colocar meus equipamentos para secar antes de embarcar pra Paraíba.

Deixe uma resposta