Um dia, por volta do ano 1500, um grupo de pessoas deve ter subido pelas encostas do cume mais elevado da América, o Aconcágua, na atual Argentina. Eram incas e levavam consigo um menino de 7 anos escolhido por sua beleza e seu bom estado de saúde. A comitiva, seguindo por uma trilha escarpada, alcançou os 5.300 metros de altitude. Lá em cima, cercados pelo gelo e por penhascos, os incas supostamente acabaram com a vida do menino com um golpe na sua cabeça.
Três décadas depois desse achado, o menino sacrificado aos deuses incas volta a falar. Uma equipe comandada pelo geneticista Antonio Salas, da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), leu seu DNA e o comparou a uma base de dados de 28.000 genomas. Seus resultados mostram que o menino pertenceu a uma linhagem humana que se formou há 14.300 anos e que já não existe sobre a face da Terra. A pesquisa respalda os últimos estudos genéticos com americanos atuais e esqueletos ancestrais, que sustentam que os humanos pisaram na América pela primeira vez há 15.000 anos, procedentes da Sibéria.
O grupo de Salas não leu o genoma nuclear, o livro de instruções presente no núcleo de cada célula nossa, e sim o DNA residual que existe nas mitocôndrias, as pilhas que dão energia às células. O DNA mitocondrial é herdado exclusivamente da mãe, razão pela qual é muito útil para averiguar se duas pessoas estão aparentadas. “A linhagem desse menino entrou pelo norte da América, evoluiu e desapareceu, o que não é surpreendente, porque a maioria dos incas morreu após seu contato com os europeus, por enfermidades como o sarampo, a gripe, a varíola e a difteria”, diz Salas.
“Toda a variedade genética americana surge da incubação no estreito de Bering [a antiga Beríngia] e entrou em várias ondas. A linhagem-mãe do menino inca data de 18.300 anos atrás, e a da múmia é um ramo”, detalha Salas. É a primeira vez que se lê o genoma mitocondrial inteiro de uma múmia americana, dizem os autores no estudo publicado nesta quinta-feira pela revista Scientific Reports.
Os pesquisadores, entre eles o pediatra Federico Martinón Torre, do Hospital Clínico Universitário de Santiago de Compostela, utilizaram uma pequena amostra do pulmão do menino, colhida tempos atrás. A múmia completa “continua sob a guarda da Universidade Nacional de Cuyo [Argentina], congelada a -20 graus Celsius, mas seu lugar concreto é um segredo”, conta Salas.
O próximo objetivo dos pesquisadores é analisar o genoma inteiro da múmia e, sobretudo, seu microbioma: o DNA dos micro-organismos que viviam no interior da criança e que podem ter sido modificados com a chegada dos europeus e suas doenças.
O menino inca, conhecido na Argentina como a múmia do Aconcágua, foi sacrificado como parte da Capacocha, uma cerimônia inca que consistia em fazer oferendas ao Sol na época das colheitas ou ao soberano do Império em caso de enfermidade. No ritual eram oferecidos objetos, mas também sacrifícios humanos – crianças sãs e belas, destinadas a transmitir sua energia ao Inca.
Fonte: El Pais