Aconcagua – Glaciar dos Polacos

Reflexões

Em uma mesa, Arthur, que já evitava caminhar com aqueles pés inchados, enfaixados e cheios de bolhas, encontrara tempo para recapitular os acontecimentos dos últimos dias, passando os olhos nas fotos e vídeos das câmeras, recolhendo-se sob a aba de seu boné. Aproveitei o tempo que tínhamos agora para pensar em tudo que aconteceu e me afastei, já com lágrimas nos olhos, para ir ao banheiro chorar um pouco. Eu e ele sabíamos que, na melhor das hipóteses, Arthur teria tempos difíceis daqui pra frente. Meu parceiro começara a imaginar como conseguiria escalar em rocha novamente se tivesse que amputar os dedos dos pés e eu tentava animá-lo dizendo que todo mundo se adapta e que ele provavelmente voltaria a escalar até melhor se fosse o caso. Mas era uma barra bem pesada e me permiti derramar algumas lágrimas na frente do espelho do banheiro. Que porcaria de esporte de maluco era aquele que matava e mutilava! Qual era o sentido de tudo aquilo? Me questionei com o pensamento do leigo. Perguntas que provavelmente sempre ecoarão sem resposta.

Limpei o rosto e saí para tentar resolver algumas coisas por telefone. Passei quase uma hora ocupado com a tarefa de trocar o dinheiro em moedas e procurar encontrar o único telefone público do lugarejo para discar pro Seba e perguntar se podíamos ir para sua casa. Numa destas tentativas, liguei por engano para o celular de sua namorada, Caro, que naquele exato momento estava em Machu Picchu. Gastei minhas moedas, mas valeu ouvir o entusiasmo na voz da menina.  Também consegui falar com a médica recomendada por Gabriele, que cobrou cem dólares a consulta. Fiquei de decidir com Arthur e tornar a ligar pra ela de Mendoza.

Ao retornar para a Hosteria onde estava Arthur, encontrei-o conversando com três turistas brasileiros que estavam por lá de passagem.

– Cara, você não sabe quem morreu…

Esse tipo de pergunta é só pra dar mais angústia, pois eu realmente não vou conseguir imaginar se foi um parente ou o Barack Obama. Perguntei, temendo a resposta: “Quem?”

-Bernardo.

-Bernardo Collares? – A voz embargou. Arthur contou o ocorrido, descritos pelos brasileiros que, apesar de não serem montanhistas, sabiam detalhes e os nomes dos escaladores. Estava difícil ter esperança de que não fosse o nosso pessoal. Tentei disfarçar o abatimento, mas estava sendo uma porrada atrás de outra. Nem tivemos muito tempo de conjecturar, pois o ônibus estava de saída. Os brasileiros fizeram questão de, um por um, tirar foto conosco. Será que nunca viram um sujeito com pé congelado?! A viagem até Mendoza foi só tristeza. Arthur esteve presente na temporada anterior de El Chalten, convivendo e escalando com o pessoal lá e era muito amigo de Bernardo. Eu realmente o admirava por sua habilidade na escalada, dedicação ao montanhismo, simpatia e simplicidade. Queríamos chegar logo em Mendoza para buscar notícias pela internet, mas além disso tínhamos nossos próprios problemas para resolver.

Sebastian foi novamente muito gentil em nos receber. Mal dava para acreditar que na madrugada do dia anterior estávamos descendo do cume do Aconcagua e agora estávamos tomando um banho quente em Mendoza às três e meia da tarde. Ao sair do banheiro, Arthur desabafou perdendo a esperança, ante o aumento das bolhas e do inchaço do pé, já deformado:

– Junior, o pé tá ficando cada vez pior. Cara, acho que não vai ter jeito…

Respondi, no estilo da canadense brava:

– Que nada! Vai ficar bom. Não pensa nisso não! – Era impossível não pensar, com aqueles dedos iguais a uma ameixa roxa, cada um era quase como uma bolha só. Vendo o nosso desespero, Seba contou que na primeira vez que foi ao Aconcagua também ficou com um dedo parecido. Mas no acampamento base fizeram uma punção e depois tratou com pomadas e comprimidos. Seu dedo parecia tão normal como qualquer outro! Segundo ele, amputação era coisa do passado, hoje em dia é só tratar com uma “pomadinha”. Olhamos o seu dedão e não havia seqüela alguma. Somente uma tatuagem naquele local pouco convencional. Seria para esconder alguma cicatriz? Quase dei um abraço de felicidade em Seba pelo alento que nos deu, quando já começávamos a perder toda a nossa esperança.

Dra. Carina

A médica Carina chegou logo e, após examinar os pés de Arthur e confirmar o diagnóstico de Gabriela, receitou realmente a pomadinha antibiótica, vasodilatadores, outros antibióticos além de um cuidadoso tratamento de assepsia duas ou três vezes ao dia. A alegria veio mesmo quando a mulher finalmente disse que Arthur voltaria a escalar logo depois de um mês! Meio incrédulos, quase não nos contivemos com o alívio que aquelas palavras trouxeram. Mas Arthur ainda teria um martírio pela frente. Não poder se locomover nas primeiras semanas e principalmente não poder escalar tão logo. Arthur cancelara seus planos de viajar pelo Chile e Argentina e antecipou a data de sua passagem de retorno pro Rio.

A recuperação de Arthur foi impressionante. Na primeira semana os dedos pareciam ameixas maduras. Na segunda, já no Rio, pareciam ameixas secas. Na terceira, o pé estava totalmente desinchado, mas alguns dedos estavam assustadoramente pretos e pareciam envernizados. Na última semana, a casca preta começou a cair e revelar um dedo rosado novinho em folha. Somente a unha permanecia escura. Ao todo, foram vinte sessões de câmara hiperbárica. Apenas um mês depois, com a definitiva confirmação de que ele permaneceria com todos os dedinhos é que realmente pudemos comemorar a escalada e reunir a galera para mostrar as fotos e vídeos.

Fazer parte de um grupo de montanhistas é um grande motivo de orgulho. Olhando para cada figura ao meu lado tento imaginar quantas dificuldades e conquistas o indivíduo vivenciou, muitas vezes somente com um parceiro como testemunha. Quanta força forjada pelo sacrifício, cansaço e dor. Quantas pessoas realmente se aproximaram dos seus limiares? Ter amigos dos quais você se orgulha e admira é também um privilegio. Poderia ser este um dos muitos motivos que busco para justificar o gosto pelas montanhas e a filosofia do montanhismo. A habilidade de tomar decisões e exercitar o bom-senso, tentando prever as inúmeras variáveis que se ramificam numa escalada ou na nossa vida é algo que acredito que o montanhismo desenvolve de forma grandiosa. Nos Andes, é muito comum se desejar “suerte!”. Realmente, no alpinismo, o fator sorte começa a fazer diferença, além de habilidade e do conhecimento. É quando exigimos mais ainda de outras habilidades para tentar “adivinhar” o clima, as condições do gelo ou, talvez o mais difícil, as condições do nosso próprio corpo para tentar minimizar as probabilidades da “mala suerte”.

Sigo assim, procurando desculpas para justificar a minha atração pelas montanhas. Respostas para questões que eu já acreditava respondidas. O que realmente consigo saber é que até agora o montanhismo me deu muito mais momentos de satisfação do que tristeza.

Download do relato completo em PDF: [download id=”3506″]

Os tchecos finalmente enviaram a foto! Tente achar os escaladores. Dica: Estão antes do Cuello de La Botella.

Mais informações em https://expedicaopolacosnoaconcagua.wordpress.com/

20 comentários em “Aconcagua – Glaciar dos Polacos”

  1. Fala Jr. Pude sentir a vibração nas palavras do teu relato ( 1ª parte). Isso é muito bom e ajuda na recuperação. Li agora sua resposta sobre o congelamento.Já passei um perrengue levemente parecido pois quando fui a primeira vez no Aconcagua, via normal,cheio de planos e sonhos, estava calçando uma bota La Sportiva mista.Inocentemente achei que seria suficiente.Ainda bem que o bom senso prevalesceu e decidi voltar de Nido, com os dedos do pé direito duros e sem sensibilidade.Nada de mais, felizmente.Mas, uma lição eu aprendi: Quanto menos se respeita a montanha, mais perigosa fica a escalada.Jamais se pode subestimar uma montanha e ainda mais a Sentinela de Pedra. Um grande abraço e melhoras.

  2. Junior, um livro só é pouco pra vc contar suas aventuras e historias! Mas seria uma satisfaçao ler, vendo só pela amostra daqui! Parabens pelo feito e pelo relato, pq é no relato q nós,simples mortais (ehehheh) podemos sentir um cadinho do seu feito! Valew!

  3. “sentei num tufo daquelas gramíneas e imediatamente senti as nádegas pegando fogo! ”
    Então quer dizer que vc ficou com fogo no rabo e nao me falou nada????????

    hehehehehehhehehehehhehehehe
    Kmon cara… seus textos estão ficando 10!!!!

  4. Meu velho, estava esperando por isso… pelo seu relato repleto de detalhes e de emoção… irado demais! Parabéns a vcs mais uma vez… E como tá o pé do Arthur?

    Abraço!

  5. Epico foi a palavra que encontrei para definir melhor o relato até aqui. Não me prive do resto, por favor. E, mais uma vez, parabens.

  6. Paulo,
    mais uma vez me empolgo e me emociono com seus relatos. Além de ser um montanhista brilhante vc escreve como ninguém.
    A cada relato seu eu entendo mais os seus motivos para gostar e viver neste esporte. É isto que faz o sangue correr nas veias. Apesar dos riscos, a experiência adquirida em cada jornada e a sensação de superação e conquista não tem preço.
    Parabéns mais uma vez a vcs por mais esta vitória.
    Um grande abraço, Gisele

  7. Hi,
    I´m the guy who you met on your way down to C1. We took some photos of you on the glacier on your summit day. I sent you an email on the adress you gave me. Obviously it did not arrived. Write me your correct adress so I can send you those photos.
    I hope your toes are all right already.
    Best regards
    Milan Keslar

  8. Paulo,
    Sua narrativa é rica e me emociona sempre que a leio.
    Pense em transcrever os seus relatos e os do Arthur para um livro, que tal?
    Boas montanhas!
    Beijos

  9. Junior, só li este relato hoje… está show mesmo. Foi realmente “animal” esta escalada de vocês, fiquei imaginando o caminho todo enquanto lia, temos poucos livros sobre escalada alpina de Brasileiros, você poderia em breve enriquecer esta biblioteca com um livro, espero que você consiga mais alguns feitos, tem muita montanha ainda te aguardando! Abç. Dago

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