Aconcagua – Glaciar dos Polacos

Pé na Estrada

No dia seguinte saímos para resolver a burocracia da permissão na Secretaria de Turismo e Caro nos acompanhou. Tive problemas para sacar dinheiro do cartão do meu “querido” banco Santander que insiste em bloquear minhas transações internacionais mesmo utilizando o assim várias vezes no ano. Escolhemos a empresa que forneceria as mulas e aproveitamos para esticar até a Casa Orviz, na mesma avenida. Uma loja de venda e aluguel de equipamentos que eu conhecia por ter grande oferta de material e preços bons. Eu decidia ainda se comprava ou alugava uma jaqueta de penas de ganso, pois eu tinha uma de pluma sintética muito pesada – 1,6 kg contra os 600 gr da maioria dos modelos de pena de ganso. No final, decidi ir com a minha mesmo que apesar de pesada era muito quente. Compramos somente um refil de gás para levar para o cume junto com um pequeno fogareiro em caso de emergência. Conhecemos uma paulista que trabalhava na loja. A menina nos mostrou os dedos levemente  atrofiados e contou que tivera congelamentos há alguns anos por não utilizar mitones (luvas de dois dedos, mais quentes do que as de dedos separados). Recomendou que levássemos hot-hands, uma espécie de sachê que, em contato com o ar, produz calor por até 12 horas. Concordamos prontamente e levamos um par para as mãos e um para os pés.

No dia seguinte, estávamos pegando o último ônibus para Los Puquios, base ao lado da rodovia de onde sairíam nossas mulas e onde acamparíamos ao lado de uma cabana que funcionava como restaurante também. Foi engraçado ver um grupo de alemães e americanos nos observando com cara de preocupação quando sacamos a barraca dentro da embalagem ainda lacrada e começamos a descobrir como a montavávamos em meio à alguma leitura nas instruções. Eu namorava esse modelo de barraca há anos pela internet em uma loja chilena e algumas semanas antes de viajar, descobri que havia somente uma dela e em promoção. Comprei e pedi para entregar na casa de uma conhecida de Arthur que morava em Santiago. Depois de conversar com os gringos que também acampavam em Los Puquios, expliquei que somente a barraca era nova. Nós tínhamos alguma experiência! Os alemães foram muito gentis e ficaram empolgados depois que contamos que tínhamos o apoio da marca alemã Deuter no Brasil e que tentaríamos o Glaciar.

Carta Topográfica
Carta Topográfica

Logo durante a noite, a barraquinha já tinha o seu batismo, aguentando uma pesada chuva que diminuiu de intensidade somente pela manhã, se transformando em um sereno. Arrumamos nossas coisas, acompanhamos o empacotamento do equipamento que ia nas mulas e seguimos de van até a entrada do parque em Punta Vacas. Lá fizemos o check-in na tenda dos guarda parques e começamos o nosso primeiro dia de caminhada embaixo de uma chuva fina.

Após 4 horas mais ou menos cheguei no acampamento Pampa de Las Leñas e Arthur, que tinha se adiantado, já me aguardava. Neste primeiro dia as mulas chegaram depois de nós. No segundo dia, decidimos colocar a barraca que carregávamos na carga das mulas para ficarmos ainda mais leves e desta vez quase corremos por outras quatro horas até o acampamento Casa de Piedra. O caminho desde então, apesar de longo, com vinte quilômetros cada dia, tinha pouco desnível, mas o trecho seguinte nos reservava o dobro ou mais: mil metros até o acampamento Plaza Argentina.

No acampamento Casa de Piedra, conhecemos um polonês que falava um pouco de português. Havia morado alguns meses no Brasil e nos contou de sua idéia de também entrar no glaciar conquistado por seus conterrâneos

Neste terceiro dia, acordamos muito cedo, às cinco da manhã para às sete já estar atravessando um rio de degelo que corria ao lado do acampamento. Só de tirar o sapato e a meia, já dava uma tristeza sem fim. No primeiro passo dentro da água congelante, já não senti mais o pé. A partir daí era pisar com cuidado pra não machucar nas pedras e torcer pra acabar logo. O torpor virava uma dor aguda com o passar do tempo. Mesmo depois de calçar os sapatos novamente, ainda caminhamos um bom tempo com os pés gelados e dormentes.

Combinamos de Arthur se adiantar pois no dia anterior segui seu ritmo e achei que tinha me desgastado mais do que no primeiro. Além do mais eu parava para fotografar e filmar. Neste último dia, a beleza do Vale de Vacas continuava presente na vegetação rasteira até quase 4000 m. Numa das paradas que fiz para descansar, sentei num tufo daquelas gramíneas e imediatamente senti as nádegas pegando fogo! Saltei com a sonoplastia de um berro. É claro que uma vegetação que nasceu a tanto custo naquela altitude e com aquele clima desértico, tinha que se proteger das mulas e espertinhos como eu com centenas de espinhos duros, com o comprimento de uma unha e afiados como agulhas, camuflados entre as pequenas folhas.

Somente neste terceiro dia também é que tivemos a nossa primeira visão do gigante. Caminhando por um estreito cânion , depois de abandonar o Vale de Vacas, o primeiro que aparece é uma ponta branca de neve atrás de montes de rocha. Quando o glaciar se mostrou por inteiro e pude identificar inclusive a rota direta, 4000 metros acima de mim, me senti um insignificante arrogante e pretensioso. Eu tentava me imaginar formiguinha, arranhando o glaciar e pendurado em alguma parte da imensidão branca. Quem tinha inventado essa idéia? Mais uma enrascada! O glaciar parecia uma parede dali de onde eu estava, quem disse que era o tempo todo 45 graus de inclinação? Me restava ir lá e conferir…

Neste dia reparamos numa equipe de oito montanhistas indonésios que traziam os dizeres “Seven Summits” nas bagagens. Seria o Aconcagua o primeiro ou o último cume dos de cada continente que eles estariam tentando? Por ser um grupo maior ou por estarem com mais peso, ultrapassei o pessoal, agradecendo a passagem.

Horas depois cheguei ao acampamento base Plaza Argentina e encontrei Arthur já finalizando a montagem da nossa barraca. O esquema lá é parecido com o de Plaza de Mulas. O acampamento é todo loteado pelas empresas de expedições e de acordo com o fornecedor contratado, você acampa em um local determinado. Neste primeiro dia não fizemos mais nada a não ser beber água e urinar.

Para gostar de alta montanha tem que ser meio doido. Deve-se gostar de andar mais que cristo e de beber água até explodir, estilo tortura oriental. A consequência é a vontade de urinar a cada hora. Uma vontade que chega devastadora e de repente você tem poucos segundos para resolver. A solução é deixar uma garrafa com boa capacidade e boca larga dentro da barraca. E esvaziá-la de vez em quando lá fora.

Era o último dia do ano, o segundo reveillon que eu passava dormindo sem comemorações e na companhia de Arthur. Quantas pessoas estariam se abraçando, desejando votos de felicidades numa onda que circundava o planeta a cada hora? Naquele momento somente interessava me aninhar no saco de dormir e me entregar ao sono sem tomar conhecimento de nada.

No dia seguinte, tiramos para descanso, pois no próximo faríamos nossa primeira subida com carga ao primeiro acampamento de altitude, o campo 1. No nosso dia de folga visitamos o médico para exames de rotina. Já vínhamos monitorando a oximetria com um oxímetro de bolso e sabíamos que estávamos com bons níveis. Arthur se mantinha com a porcentagem de oxigênio alguns pontos melhor que eu, mas no exame com o médico, apresentou a pressão arterial um pouco alta. Foi recomendado evitar sal e fazer uma nova visita depois.

O médico e a guarda parque Erika nos deram algumas informações e sugeriram que fizéssemos porteio em cada acampamento de altitude. Disseram que poderíamos conseguir informações com dois porteadores que haviam feito a mesma rota há algumas semanas, um deles chamado Mariano. Procurei a pessoa pelo acampamento mas não o encontrei.

Ocasionalmente, víamos montanhistas manipulando equipamentos técnicos: cordas, parafusos, estacas e capacetes. Isso confortava pois sabíamos que haveriam outras equipes no glaciar, mas preocupava com a possibilidade de haver engarrafamento nos lances mais delicados, caso a rota fosse a mesma que a nossa.  Tratamos de separar nossa tralha que subiria no dia seguinte.

20 comentários em “Aconcagua – Glaciar dos Polacos”

  1. Fala Jr. Pude sentir a vibração nas palavras do teu relato ( 1ª parte). Isso é muito bom e ajuda na recuperação. Li agora sua resposta sobre o congelamento.Já passei um perrengue levemente parecido pois quando fui a primeira vez no Aconcagua, via normal,cheio de planos e sonhos, estava calçando uma bota La Sportiva mista.Inocentemente achei que seria suficiente.Ainda bem que o bom senso prevalesceu e decidi voltar de Nido, com os dedos do pé direito duros e sem sensibilidade.Nada de mais, felizmente.Mas, uma lição eu aprendi: Quanto menos se respeita a montanha, mais perigosa fica a escalada.Jamais se pode subestimar uma montanha e ainda mais a Sentinela de Pedra. Um grande abraço e melhoras.

  2. Junior, um livro só é pouco pra vc contar suas aventuras e historias! Mas seria uma satisfaçao ler, vendo só pela amostra daqui! Parabens pelo feito e pelo relato, pq é no relato q nós,simples mortais (ehehheh) podemos sentir um cadinho do seu feito! Valew!

  3. “sentei num tufo daquelas gramíneas e imediatamente senti as nádegas pegando fogo! ”
    Então quer dizer que vc ficou com fogo no rabo e nao me falou nada????????

    hehehehehehhehehehehhehehehe
    Kmon cara… seus textos estão ficando 10!!!!

  4. Meu velho, estava esperando por isso… pelo seu relato repleto de detalhes e de emoção… irado demais! Parabéns a vcs mais uma vez… E como tá o pé do Arthur?

    Abraço!

  5. Epico foi a palavra que encontrei para definir melhor o relato até aqui. Não me prive do resto, por favor. E, mais uma vez, parabens.

  6. Paulo,
    mais uma vez me empolgo e me emociono com seus relatos. Além de ser um montanhista brilhante vc escreve como ninguém.
    A cada relato seu eu entendo mais os seus motivos para gostar e viver neste esporte. É isto que faz o sangue correr nas veias. Apesar dos riscos, a experiência adquirida em cada jornada e a sensação de superação e conquista não tem preço.
    Parabéns mais uma vez a vcs por mais esta vitória.
    Um grande abraço, Gisele

  7. Hi,
    I´m the guy who you met on your way down to C1. We took some photos of you on the glacier on your summit day. I sent you an email on the adress you gave me. Obviously it did not arrived. Write me your correct adress so I can send you those photos.
    I hope your toes are all right already.
    Best regards
    Milan Keslar

  8. Paulo,
    Sua narrativa é rica e me emociona sempre que a leio.
    Pense em transcrever os seus relatos e os do Arthur para um livro, que tal?
    Boas montanhas!
    Beijos

  9. Junior, só li este relato hoje… está show mesmo. Foi realmente “animal” esta escalada de vocês, fiquei imaginando o caminho todo enquanto lia, temos poucos livros sobre escalada alpina de Brasileiros, você poderia em breve enriquecer esta biblioteca com um livro, espero que você consiga mais alguns feitos, tem muita montanha ainda te aguardando! Abç. Dago

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