Gelo na Eslováquia

Na primeira vez que saí do Brasil, me perguntavam: “-Europa tudo bem, mas por que Eslováquia?” Eu havia conhecido uma menina chamada Kristina da República Tcheca pelo ICQ e ela me convidou para ir passar um tempo com ela , os amigos e a família, nas montanhas da Eslováquia. Aproveitando uma passagem mais barata que minha irmã arrumou como comissária de bordo, treinei meu inglês, arrumei um dinheiro e fui.

Eu fui para Frankfurt na Alemanha, a cidade mais ao leste que a Varig fazia e de lá, depois de quatro horas parado na polícia explicando minha vida, peguei um trem para Praga, capital da República Tcheca, onde Kristina, seu pai e a cadela Tereza me esperavam na estação de trem. Passei um dia lá, conheci a cidade, que é incrível, castelos, igrejas e depois fui pra Olomuc, cidade onde a família Mathus morava, lá conheci seu irmão Filip Mathus, e sua mãe. Filip, Kristina e muitos dos seus amigos que eu conheci são bem conhecidos no seu país por causa das competições de mountain bike, downhill, freestyle e aparecem em revistas e vídeos sobre o esporte.

Por algumas vezes eu me senti o próprio Crocodilo Dundee, pois as pessoas olhavam para mim com curiosidade – achavam raros e bonitos meus “cabelos e olhos negros” além de estarem sempre me pedindo para contar sobre meu país, muito conhecido pelo carnaval, pela Floresta Amazônica ou pela violência do Rio de Janeiro. A noite íamos a pubs e na volta, brincávamos na neve e no gelo, deslizando em passarelas congeladas, como aqui nós fazemos nas cachoeiras de Sana e Visconde de Mauá. Isso quando não tínhamos que fugir dos skinheads porque conversávamos em inglês… 🙂

Depois do Natal, fomos com mais duas outras famílias para a Eslováquia e ficamos em umas cabanas bem perto do teleférico, numa estação de esqui chamada Martinske Hole. Antes de viajar, logo que eu tive certeza que ia pra lá, comecei a pesquisar na internet sobre o pico mais alto da Eslováquia e encontrei muito sobre Gerlachovsky Stit, com 2655 m de altura, mas li também que o parque onde ele se encontra, fecha no inverno e me conformei em não escalá-lo.

Logo já tinham me arrumado uns esquis e eu, que pensara que seria fácil, estava lá, com incríveis dificuldades para me movimentar com aquele troço desengonçado nos pés. Minha maior dificuldade era fazer curvas, talvez por causa do hábito dos patins in line. Com esquis, se você faz a cuva para a esquerda, por exemplo, tem que colocar o peso no pé direito. Não me faltaram instrutores e acho que apesar de tudo, aprendi rápido. Então a galera achou melhor subir mais a montanha onde estávamos para procurar lugares com mais neve. Me contaram que onde agora havia 20 centimetros de neve, no inverno passado tinha neve até o teto das cabanas.

Já tínhamos subido quase 1000 m pelo teleférico e agora seguíamos a pé. Algum tempo depois, Kristina sentiu algumas dores no tornozelo e achou melhor ficar com sua amiga Pavla. Segui com Filip e Damian e chegamos até um grande platô, onde podia-se ter uma bela vista de uma grande cadeia de montanhas no horizonte. Vi que ainda havia uma parte um pouco mais alta com um marco e disse a eles que iria lá para tirar fotos da vista para o outro lado da montanha. Achei que fosse rápido, mas era mais distante do que pensei e mesmo andando com o passo rápido e correndo por algumas vezes, levei em torno de uma hora para ir e voltar. Em alguns pontos a neve chegava ao joelho, nessas horas parece que se caminha em areia movediça, em outras partes havia gelo e é impossível não escorregar.

Topo do Teleferico em Martinske Hole

Quando voltei ao ponto onde estavam Filip e Damian, eles me falaram que o teleferico fechava 16 hs e tínhamos que descer tudo em mais ou menos 30 minutos. A única maneira era esquiando! Me fizeram algumas recomendações para que eu descesse em zigue-zague. Eu estava de esquis e eles de snowboard, mas era o meu primeiro dia como esquiador e eu ainda não havia aprendido a fazer as curvas, então eu comecei a descer em linha reta pela montanha, que nesse ponto era bem íngreme e quando percebia que estava muito rápido, talvez a uns 80 por hora, eu me jogava na neve para parar. A primeira vez que caí desta forma, achei que eu tinha me quebrado todo e também aos esquis, pois as lâminas dos esquis voavam, desprendendo-se das botas e os bastões das mãos giravam presos por uma tira de couro em meu pulso e batiam no meu corpo, tudo isso em meio a uma nuvem de fumaça de neve. Eu mergulhava a toda velocidade na neve e parecia que por causa disso, o frio penetrava nos meus dedos, mesmo com grossas luvas de snowboard. Após cada tombo eu me avaliava e descobria que como que por um milagre eu estava inteiro. Filip e Damian gritavam: “- You are crazy???” e eu somente pude dizer a eles que não se preocupassem pois eu não poderia me machucar! Enquanto eu conseguisse me manter longe das árvores…

Já chegando no teleférico, havia bastante gente na redondeza e eu milagrosamente fiz minha primeira curva em alta velocidade e dei uma de expert pra quem não me viu 50 metros mais atrás. Mas não adiantou. As meninas já tinham pego o teléferico e nós passamos da hora, junto com mais os outros três garotos teriamos que descer pela floresta por mais ou menos uma hora. Começamos a descer pela estrada, eu, Filip, Damian, Cuba Cuba e um garoto que eu apelidei de Macaulay, por se parecer com o ator Macaulay Culkin do filme esqueceram de mim. Cuba me emprestou sua prancha de snowboard para que eu descesse sentado como um trenó enquanto ele usava meus esquis. Seria muito perigoso se eu fosse com os esquis, primeiro porque a estrada era bem sinuosa, segundo porque subiam carros ocasionalmente e ao lado da estrada havia uma ribanceira com muitas arvores. Eu me sentia como nos filmes de aventura que eu assistia na minha infância. Saímos da estrada e pegamos uma trilha de mountain bike (down hill) que mais parecia uma erosão. Me senti uma criança que desce pela primeira vez com sapatos lisos… Dos 74 tombos, 68 devem ter sido meus. Não tinha botas com solado novo nem cuidados ao pisar que me mantivessem em pé. Eu me sentia o iniciante, pois todos me ofereciam para carregar meus esquis, mochila, vendo minhas dificuldades. Ao final, lá estávamos, molhados, congelados e com as pernas doloridas de exaustão, mas nada que um banho bem quente de banheira não resolvesse.

Algum tempo depois, conversei com o dono dos chalés onde estávamos pois ele era guia e eu insistia em querer subir o Gerlachovsky Stit. Ele me perguntou sobre minhas experiencias eu eu contei que no gelo eu não tinha nenhuma. A mãe de Kristina ainda reforçava que eu tinha o nariz muito sensível e que eu reclamava toda hora de frio, parecia que ela não queria de jeito nenhum que eu fosse. Após eu afirmar que estava disposto a pagar até 100 euros por um guia, acho que o homem viu que eu estava realmente decidido a ir e quase se convenceu a me levar, mas para azar meu, o tempo esquentou, em vez de nevar, chovia e a neve começou a derreter transformando todo o chão num imenso ringue de patinação. Isso mesmo, ao invés de andar, deslizávamos – às vezes de pé, muitas vezes de bunda. Isso tornou impossível a subida ao Gerlachovsky Stit.

Talvez percebendo minha frustração, combinaram de me levar a uma trilha para um pico de mais ou menos 1.400 m de altura chamado Tlsta no Parque Nacional Velka Fatra. O tempo havia esfriado novamente e nevava. A neve cobria o gelo escorregadio, tornando os escorregões mais constantes, mas desta vez eu já estava me acostumando a caminhar no gelo e na neve e não caí tanto. Visitamos belas cavernas com e estalgtites de gelo onde, segundo o guia, havia fósseis de ursos pré -históricos.

A floresta de pinheiros é bem aberta e não existe uma trilha muito demarcada no chão, principalmente sob a neve, então é muito importante ir observando as marcações nas árvores – pequenos símbolos coloridos pintados nos troncos das árvores, cada símbolo indicando uma trilha. Ao longo de aproximadamente duas horas de subida somente cruzamos com um cara descendo. Ao chegarmos no topo, a impressão que eu tinha é de que eu estava no meio de uma tempestade de neve na Antártida. Eu me amaldiçoava por ter me esquecido de levar o termômetro, mas não duvido nada da sensação térmica ter sido de -30, pois na primeira noite em Martinske Hole, registrei -15 no termômetro, sem aquele vento e lá nas cabanas. O vento quase nos carregava, e qualquer parte do corpo que ficasse exposta a ele queimava com tamanho frio. Não era possível enxergar a mais de 10 metros de distância e paramos no cume para assinar o livro de visitas. Tirei algumas fotos com dificuldade e com maior dificuldade ainda, consegui rabiscar meu nome e o endereço do site Trilha & Cia. Nesse ponto percebi que, talvez por causa do vento, o frio estava penetrando através das duas luvas que eu usava. Livro de cume

Quando percebi, o guia já havia dado no pé e iniciado a descida – não paramos nem por 15 minutos naquele local desabrigado e creio não ser realmente possível isto. Comecei a descer e ia por último, quando senti uma vontade imensa de urinar. O local onde eu me encontrava agora era mais abaixo do cume e já havia árvores para proteger do vento, tinha que ser ali mesmo. Comecei a dificil tarefa de abrir caminho por entre as roupas, uma calça impermeável, uma jardineira de esqui e uma calça de ciclista. Era muito casaco e luva, mas finalmente me senti aliviado. Só que ao mesmo tempo que percebi que não caía nada na neve, senti algo quente nas calças! Só faltava essa! Com as mãos congeladas e dormentes eu não tinha tato e lá estava eu me urinando nas calças! Me ajeitei novamente e percebi que agora eu urinava na mão, mas não foi muito ruim pois meus dedos congelados agradeceram aquele breve calor. Logo me lembrei que eu teria que voltar no carro com todo mundo e seria uma vergonha voltar todo mijado! Comecei a esfregar neve nas calças e nas luvas e acho que adiantou, mas voltei a ficar congelado. Apressei o passo e alcancei os outros dois. descemos por um caminho diferente e levamos mais duas horas entre um escorregão e outro para chegar ao final da trilha, onde Mr. Matus nos esperava com sua Besta.

Antes de voltarmos para a República Tcheca, ainda subimos mais uma vez o Martinske Hole, dessa vez todo mundo foi, a mãe, o pai de Kristina e até a cadela Tereza. O dia estava muito bonito e foi a primeira vez em quinze dias que eu vi o céu totalmente azul.

Em alguns pontos a neve derreteu quase que totalmente e agora partiríamos de volta a Olomuc, me deixando com o único desejo não realizado de ter feito snowboard – em pé, claro. Um dia depois me despedi de toda a família e os pais de Kristina me levaram para Praga e depois de me encherem de presentes, camisas, chocolates, me colocaram no trem para Frankfurt. A aventura não tinha terminado, lá estava eu sozinho num país estranho e sem entender o que as pessoas diziam. A volta no trem não foi muito agradável, pois o trem estava cheio de alemães voltando das férias no leste europeu e a minha cabine, diferentemente da ida, agora estava lotada com alemães, poloneses, sei lá totalmente embriagados e pra meu azar havia um que não parava de peidar!! Em Frankfurt, resolvi dar uma volta no centro e não gostei muito. Eram sete e meia da manhã e não tinha amanhecido ainda. No primeiro quarteirão me deparei com uma legião de drogados vagando pelas ruas e vendendo, consumindo ou procurando guimbas de maconha no chão. No outro quarteirão só havia boites, cabarés, prostitutas, travestis e resolvi passar o dia no aeroporto mesmo. Tive sorte e fiz amizade com uma bailarina brasileira que morava em Israel e ia com o filho visistar a família no nordeste. Lanchamos e conversamos andando para cima e para baixo esperando dar a hora do vôo naquele aeroporto que parecia maior que o Barra Shopping duas vezes.

Quando finalmente me vi embarcado e chegando no Rio, comecei a me sentir muito orgulhoso do meu país e de minha cidade. No avião passavam documentários sobre a cultura e geografia de cada estado do Brasil. Havia também umas tres estações de rádio somente com música popular brasileira e aquilo me trouxe uma satisfação muito grande. Era muito bom ouvir e poder falar o português novamente.

No aeroporto meu pai me esperava. Pena que algumas coisas continuavam iguais. Na noite anterior, haviam roubado sete aparelhos de som na garagem do meu prédio.

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Down Hill – Estilo de mountain bike onde os competidores somente descem por uma trilha em florestas ou no gelo. voltar

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