A Bia, entre outras coisas, nunca tinha acampado, andado de caiaque e no domingo de carnaval eu a enganei dizendo que iríamos andar nos canais e mangues de Barra de Guaratiba e acabamos chegando na Ilha Grande no fim da tarde de segunda-feira!
Animado com a otimista previsão do tempo, imprimi a tábua de marés, um mapa da Restinga da Marambaia, fiz um croqui a mão de um da Baia de Sepetiba e com um irônico pedacinho de esperança incluí a pontinha leste da Ilha Grande.
Colocamos o caiaque no canal que separa a Barra de Guaratiba da Restinga e dentro dele o essencial para uma possível pernoite ali por perto: dois sacos de dormir embalados em filme plástico de PVC, um plástico 2×2 m, sanduíches, barras de cereais, um foguete sinalizador, maquina fotográfica cuidadosamente lacrada em três zip-locks, dois litros de mate, muda de roupas limpas e secas e o material de mergulho, claro.
Atrasados, como sempre, em relação ao horário planejado para o início da aventurazinha, ainda tínhamos uma hora de maré vazante e correnteza a favor neste canal que liga o fundo da Baia de Sepetiba com o mar de Barra de Guaratiba. Foi o suficiente para cruzarmos o canal inteiro sem esforço, nos maravilhando com a diferente vegetação de mangue e suas raízes aéreas compridas encontrando a água. Vários tipos de pássaros levantando voo com a nossa aproximação e cardumes inteiros de pequeninos peixes saltavam da água morna. às vezes tainhas ou paratis gordos pulavam também da água em saltos acrobáticos. Cruzamos com uma lancha de militares e nos lembramos que beirávamos uma área militar – a restinga inteira é dividida e ocupada pelo Exército, Aeronáutica e Marinha e nos horários de expediente é usada para treinamento e tiros.
Era meio dia e meia quando a enorme Baia de Sepetiba se descortinou a nossa frente. Acompanhando sempre os mapas que plastifiquei uma larga com fita adesiva transparente, acompanhamos a restinga rumo à entrada da baia.
Por volta de duas e meia da tarde, a fome já estava apertando e paramos na primeira porção de areia que apareceu na restinga. O sol estava bem forte e almoçamos alguns sanduíches. Retomamos a remada, agora reparávamos nos gordos paratis que saltavam a todo momento.
Empolgado com a quantidade de peixes que saltava e com a água morna, resolvi dar um mergulho mas não vi nadinha em baixo d`água, parecia que eles gostavam mais de saltar do que de nadar…
Logo a vegetação que beirava a restinga deu lugar a extensas faixas de areia. Praias e mais praias passavam paralelas a nosso caiaque distante um quilômetro aproximadamente enquanto remávamos continuamente.
De acordo com meu mapa haveria uma enseada chamada Baia da Marambaia e eu procurava passar desse local pois imaginava que seria mais tranquilo para passar a noite, mas o sol já começava a baixar e a melhor opção foi parar por ali mesmo. Víamos uns barcos de pescadores 500 metros antes de onde saímos. Colocamos nossas coisas penduradas para secar e tratamos de improvisar o bivaque.
Minha preocupação era agora com a maré cheia já que a faixa de areia em que nos instalamos era muito pequena. De acordo com a tabela que eu trazia o pico da maré cheia seria as 2 da manhã e subiria um metro e meio a partir do nível atual. Coloquei o relógio para despertar naquela hora e no meio da noite constatamos que a água não nos alcançou.
No dia seguinte acordamos as seis, atrasados uma hora segundo nossos planos, e logo depois uma dupla de pescadores passou por nós catando siris com puça ao longo da praia. Perguntei se havia água doce no local onde eles acamparam e eles disseram que poderiam nos ceder da deles. Uma hora depois já estavamos comendo pão com manteiga e tomando café preto no acampamento do pessoal. Na despedida, perguntaram pra onde iríamos e respondi que não sabia ao certo, continuaríamos naquela direção e se desse poderíamos quem sabe chegar até a Ilha Grande. Um deles nos aconselhou cruzar o mar vindo de Angra pois seria mais tranquilo. Pegamos mais ou menos três litros de água gelada com eles e partimos.
Uma hora depois, por volta das 10, começamos a nos aproximar da Baia da Marambaia, que é formada por uma faixa de areia em forma de ponta que avança na direção da Ilha de Jaguanum, como se fosse uma mini restinga dentro da restinga. Nossas opções eram contornar a ponta ou cruzá-la, puxando o caiaque. Fizemos a segunda escolha, poupando algumas boas remadas.
Da Ponta da Pombeba até o fim da enseada levamos uma hora e calculando com a ajuda do mapa que eu fiz pude estimar nossa velocidade média – de 8 a 10 km por hora.
Ainda pude notar também os algodões flutuantes no céu azul próximo aos picos localizados na ponta da restinga.
No final dessa enseada, de acordo com meus cálculos começaríamos a pegar o mar um pouco mais agitado, saindo da Baia de Sepetiba. Havia uma pequena porção de areia encravada num costão de pedras, mas, para descansar, achei melhor que déssemos somente um mergulho mesmo. Pouparíamos energia para nos aproximar da praia e retomar o curso e ainda teria chance de ver como a Bia se comportaria para sair entrar no caiaque no meio do mar. Relaxamos boiando na água quente apoiados no caiaque quando Bia disse ter sentindo alguma coisa tocando seus pés. Imaginei que pudesse estar impressionada com a possibilidade de confrontar alguma criatura marinha ou que fosse somente algum plástico.
Depois que voltamos a remar, vi um cardume de golfinhos cruzando a nossa rota rolando algumas vezes sobre a água. Bia só avistou uma barbatana desaparecendo na água e ficou apreensiva. Preparei-a para uma longa puxada e possível capotamento no trecho que compreendia entre a ponta da restinga e a Ilha Grande. Eu imaginava que faríamos em duas horas, mas passando pela última prainha da Restinga, após um ancoradouro com alguns navios da marinha, comecei a notar que nossa velocidade diminuía. Percebi no mar alguns trechos na superfície lisos e outros encrespados e entendi que estávamos numa correnteza contrária. Era uma hora da tarde e de acordo com a tabela de marés, pegávamos a maré cheia que entrava na baia. Liguei o “turbo” e passei a dar violentas remadas para que tivéssemos alguma progressão.
A situação era a seguinte: o mar entraria ainda por mais uma hora, parar naquelas praias seria um certo gasto de energia para ir e voltar além de ser meio arriscado devido a proximidade das instalações militares. Já era uma hora da tarde e a tendência é sempre do mar encrespar com o passar da tarde. Achei melhor arriscar e me sacrificar um pouco pra tentar ir direto.
Lentamente vi a paisagem passando sem poder descansar em nenhum momento, pois, sem âncora, voltaríamos rapidamente tudo que penamos para avançar. Lembro que no meio do sufoco, reparei num morro íngreme bem na ponta da restinga desfigurado com as inscrições “FUZILEIROS NAVAIS” feitas com pedras brancas alinhadas de modo a poderem serem avistadas de longe. Estes dizeres podem ser avistados e lidos de aviões que fazem a ponte aérea Rio x São Paulo.
Uma hora depois de remada em ritmo forte, estávamos fora da baia já com a Ilha Grande se mostrando inteira para nós. Entre nossa pequena embarcação e aquele monte de montanhas cercada de mar, somente muita água. Todos os nossos pontos de referência estavam muito distantes, o que nos dava a impressão de não estarmos saindo do lugar. Cruzávamos ondas de um metro e meio, mas que não incomodavam tanto se você não prestasse atenção nelas. Somente por umas duas vezes nos distraímos e numa onda um pouco maior, meio de lado, quase viramos. Já estava com a cara quase na água quando retomamos o equilíbrio.
A primeira hora se passou, a segunda também. Só sabia que avançava porque começava a perceber alguns novos detalhes em gigantescos navios cargueiros que mais pareciam baratinhas no horizonte. Microscópicas bóias no meio do oceano se tornavam visíveis. Mas eu repetia à Bia que era normal e que, quando víssemos, já estaríamos lá. Mas ainda demorou para vermos… Como eu não havia levado mapa da Ilha, direcionava o barco para uma enseada à esquerda que imaginei ser Abraão ou Palmas que sei que ficava daquele lado. Era também a direção tomada por uma lancha que passou por nós logo na saída da baía. Quando finalmente chegamos na Ilha de Palmas, já estávamos praticamente na Ilha Grande, mas o esforço que eu fizera horas antes me cobrava um descanso
Normalmente, quando se está chegando, o ânimo te dá energias que você já não imaginava ter. Mas às vezes o cansaço é muito e você literalmente morre na praia. Algum tempo antes eu já tinha direcionado o caiaque para a Ilha na frente da enseada de Palmas, a Ilha de Palmas. Eu imaginava que pudéssemos descansar ali. Chegando mais perto ainda fiquei muito eufórico com a incrível transparência da água, que estava numa temperatura muito boa e que me possibilitava ver um maravilhoso fundo de pedras claras e redondas, como um aquário gigante. Fiquei com uma vontade imensa de mergulhar ali. Mas ao me aproximar da ilha com o mar um pouco agitado, não consegui amarrar o caiaque com a curta cordinha que eu tinha. Também achei arriscado para a Bia subir por aquelas pedras que pareciam estar com alguns ouriços.
Voltamos a remar em direção à Praia. Aquele curto trecho parecia não chegar nunca mais. O que no dia anterior eu faria tranquilamente em meia hora, tivemos que parar duas vezes para que eu descansasse à deriva no balanço do mar. Não aguentávamos mais água! E sol! Sem um mapa da Ilha Grande eu passei da praia de Palmas e fui em direção a praia do Mangue, um pouco mais distante. Finalmente o fundo do caiaque tocou a areia da praia. Um casal numa mesa e um grupo de jovens sentados num tronco pareciam estar nos observando a algum tempo. A mulher da mesa, vendo nossa pinta e equipamentos, perguntou de onde vínhamos.
– Nossa, mas vocês devem estar acostumados, né?
– Eu tô mais um pouquinho, mas ela é a primeira vez que anda de caiaque! – Respondi sorrindo , me referindo à Bia.
Procuramos um lugar para comer, pois era umas cinco da tarde. Na outra praia, a do Pouso, havia um restaurante, para nossa sorte, com refeição. Um cara me perguntou quanto tempo levava de Angra à Ilha…
– Não sei, viemos do Rio! Levamos dois dias – Respondi.
As pessoas ficavam curiosas com aquele caiaque comprido, metido a embarcação, com leme e um bando de mapas, bússola, tralhas penduradas. Logo já estávamos conhecidos no local.
Naquela noite dormimos outra vez na areia, um pouco mais afastados do lugar onde eu já dormira, mas que hoje em dia traz uma plaquinha “Cuidado! Jacarés”. Essa noite foi um pouco mais agitada para mim. Na anterior, Bia disse que teve pesadelos com o barulho do mar muito próximo, mas nesta fui eu que acordei várias vezes com os cães da redondeza que volta e meia faziam o maior estardalhaço latindo para não sei o que e fazendo com que Bia se assustasse e me acordasse:
– Junior, os cães estão rosnando pra gente!
Cada vez que eu acordava e me via obrigado a abrir os olhos, era um suplício. Minha vista estava queimada pelo sol e seu reflexo no mar. Não levara óculos escuros e agora eu passava a noite inteira com sensação de areia nos olhos, que ardiam muito por causa do contato da pálpebra com o globo ocular. Tinha que fazer um esforço para conseguir abrir os olhos lacrimejantes e a mínima claridade das embaçadas estrelas me doiam muito a vista. Para conseguir distinguir alguma coisa era quase que na base da imaginação, pois eu enxergava tudo encoberto por uma névoa, como se eu estivesse numa sauna. Entre uma chuvinha e outra, consegui dormir.
De manhã acordamos com os primeiros raios de sol e assim que esquentou mais um pouquinho, fui mergulhar para tentar garantir o café da manhã, pois nossa comida acabara. Bia não quis vir e foi se informar sobre barcos para o continente ou para Abraão. No início fiquei com medo de mergulhar com a vista do jeito que estava, mas assim que coloquei a cara dentro da água com a máscara, senti um alívio nos olhos naquele ambiente com menos luz. E ainda peguei uma garoupinha. Voltei para prepará-la.
Quando terminei de limpar todo o peixe e já dava uma dentada naquele sashimi fresquinho, Bia vem com a notícia de que o dono do hotel Paraíso do Sol deixara-nos tomar uma ducha de água doce. Não perdemos tempo e fomos, quando passamos pela varanda onde era servido o café da manhã, o dono do hotel, talvez vendo nossa cara de desespero, mandou que deixássem a nós tomar um café da manhã. Pão, presunto, queijo, chocolate, sucrilhos, sucos, não podia ser melhor. Contando nossa estória na mesa de café, um dos hóspedes me presenteou com um óculos escuros. Após o café, agradecemos, nos despedimos e remamos só mais um pouquinho até a praia de Palmas. Desta vez, fomos beirando as pedras e admirando a beleza do fundo colorido e cheio de pedras e da água cristalina.
Em Palmas, almoçamos, e negociamos uma vaga numa traineira pra nos levar para Mangaratiba. O caiaque foi fixado no teto do outro barco.
Em Mangaratiba começaria a outra aventura: voltar pra casa.
Combinei com a Bia de voltar para pegar o carro em Barra de Guaratiba e ela ficaria lá esperando com o caiaque.
-Se prepara para ficar aí até as dez horas da noite! – Me despedi.
Saí de lá quatro horas da tarde.
Foi um ônibus lotadaço e duas horas de trânsito para Itaguaí, cinquenta minutos no ponto, quarenta minutos em um outro ônibus até Guaratiba e mais uma kombi até o meu carro que estava lá dentro perto da entrada da restinga.
Às oito horas, ainda com um restinho de luz do dia, estava eu lá conferindo o carro e me preparando para voltar tudo para pegar a Bia e o caiaque.
No início da volta foi tranquilo, pois não havia luz forte nos meus olhos, mas depois que escureceu totalmente, os faróis dos carros que vinham em sentido contrário, ofuscavam meus olhos ainda sensíveis. Quando peguei a Rio-Santos me assutei com o trânsito todo parado, tomando o acostamento com alguns carros vindo pela contra-mão. Enxergando ainda embaçado, com o insul-film escuro que meu carro tem e com aquela fila de faróis constantemente na minha cara, por um triz não fui de encontro com um carro que estava na contra-mão. O segundo acidente que escapei, foi de continuar direto, por dentro de uma placa que ficava no meio de um desvio na estrada.
Cheguei em Mangaratiba às 9 e meia da noite e a melhor opção foi curtir o finalzinho do carnaval por ali e dormir no carro mesmo para começar a viagem de volta logo às cinco da manhã.
A volta dessa maneira foi muito tranquila, com luz, sem trânsito e nem blitz policiais – o caiaque ultrapassa em muito os limites do carro.
A vista depois ficou boa, mas das muitas coisas que aprendi nessa viagem, usar mais óculos escuros foi a mais importante.
Bela história!! o nome disso é viver..parabéns!!!