Aconcagua Sin Mulas

Epílogo

A volta do acampamento base também foi dura, com 35 kilos agora, ainda era pesado pra longa caminhada até a saída do parque.
Deu-me uma preguiça de me despedir do Hotel e do pessoal que trabalha lá…
Fiquei um dia só de bobeira. Mas não mais me sentia à vontade como quando cheguei. Cláudio, Wally, Caro e Seba já tinham ido embora. A neve estava desaparecendo quase que por completo ali ao redor, o hotel estava cada vez mais cheio, filas para o telefone, internet…
Passei este dia inteiro só arrumando a mochila, consertando os bastões, desarmando a barraca bem devagar. Fui convidado para jantar com uma família argentina que estava agora usando o refeitório livre, o “Comedor dos Pobres”, onde costumávamos ficar passando o tempo e jogando conversa fora.
Naquela noite, como minha mochila já estava pronta, fiz um novo bivaque. Foi a noite mais fria, 12 graus negativos, mas não parecia. Não havia quase nenhum vento.
Procurei uma espécie de depósito de ampolas gigantes de gás e quando fui tirar o isolante térmico de dentro da capa de nylon, vi uma luz, mas achei que fosse coisa da minha cabeça.
Ao aproximar a mão novamente do isolante, tomei um susto grande. Uma centelha imensa de eletricidade estática saia de minha mão esquerda vestida com a luva de fleece em direção ao isolante. A descarga era tão grande ali naquela escuridão, que iluminava tudo como um isqueiro faiscando. E não foi só uma, encostei várias vezes a mão, brincando com aquele fenômeno e tentando descobrir se era aquele lugar onde eu estava que provocava aquilo ou alguma coisa que tinha feito. Quando a eletricidade parecia estar toda descarregada, me lembrei que eu poderia ter filmado…
Alguns minutos depois tive uma outra experiência sem igual. Naquela noite escura, sem nuvens, comecei a ver uma luz forte iluminando as montanhas à minha frente como se fosse um avião, ou um navio com um holofote se aproximando. Rapidamente, a luz tornou a muralha de rocha totalmente clara, com as partes nevadas refletindo a claridade. Juro que até então não consegui descobrir o que era e tive que me levantar daquele meu casulo imobilizador que era meu saco de dormir recheado com casacos, luvas, pilhas, baterias e mp3. Ao olhar pra trás vi simplesmente uma imensa lua cheia surgindo repentinamente de traz do Aconcágua, no colo onde fica o acampamento Nido de Condores, brilhando intensamente e iluminando a escuridão como um recinto onde se acende a luz.
Fui dormir olhando a gigante muralha de rocha e veios de neve.

Durante a minha lenta descida passaram por mim dois jovens da família argentina com quem jantei no refúgio. Sentei numa pedra e depois de algum tempo, notei que alguém tirava foto minha. Era uma menina que vi no refúgio também e, conversando, descemos juntos. Contou-me ela que era colombiana e veio ao Aconcágua sozinha também. Chegara ao cume no dia de nossa primeira tentativa. Seu nome era Carolina. À medida que andávamos, percebi que eu não conseguiria chegar à portaria naquele dia ainda. O tempo passava e faltava muito. Olhando para trás, via o tempo fechado no topo do Aconcágua e fiquei com medo quando comecei a sentir uns pingos de chuva gelada. Naquele clima frio de vento forte constante, ficar encharcado seria uma experiência nova e provavelmente não muito agradável… Por sorte, a chuva que prometia, não caiu.

Carolina, que entrara pela outra portaria do parque, Punta Vacas, agora passaria uma noite em Confluência para conhecer a parede sul. Percebi que eu a atrasava bastante e, apesar dela insistir em me acompanhar preocupada com meu peso, eu lhe disse para se adiantar. Rapidamente ela se distanciou. Agora eu tentava chegar a Confluência também, a tempo de passar a noite lá. Cheguei no acampamento à noite, muito extenuado e com dores nos pés.

No dia seguinte, gostaria de ter acordado bem cedo para pegar o primeiro horário do ônibus, aproveitar mais a cidade de Mendoza, chegar mais cedo em casa, mas, cansado que eu estava, só comecei a andar às dez da manhã, como sempre.
No meu último dia dentro do parque, os grupos passavam por mim subindo em seus primeiros dias de expedição, no auge da empolgação e não resistiam em perguntar se eu chegara no cume. Com minha resposta afirmativa, ganhava “felicitaciones”, “congratulations”.

Arrepiei-me quando me lembrei de uma ocasião onde estive na situação inversa com uma pontinha de inveja e admiração pelo gringo que tirou uma foto minha e que me disse ter estado lá em cima também.

Quando cheguei a Laguna Horcones, o parque lembrava a Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, com várias pessoas sentadas no gramado, junto ao lago, passeando pelos caminhos e pontes, crianças correndo.
Depois de duas semanas, era o primeiro contato com “pessoas normais”.  Me senti um selvagem, um animal barbudo, com aqueles visitantes ali conhecendo meu habitat.
Me aproximei, as perguntas vinham inevitáveis:
– De onde vem?
– Do Aconcagua!
– Aconcagua? Cumbre?
– Si. Cumbre.
Mais a frente, mais perguntas de outras pessoas:
– A que altura llegaste?
– Seis mil, novecentos e sessenta e dois metros! – Falei de forma bem pausada e enfática. A admiração daquelas pessoas estranhas começava a me fazer reconhecer meu feito. Até então eu não pensava muito no assunto e encarava somente como uma missão cumprida.
Ouvia os comentários enquanto eu passava entre o pessoal:
– Ele subiu o Aconcagua!
Tive a impressão que se eu parasse ali, fariam uma rodinha ao meu redor. Para aqueles visitantes e turistas, minha passagem por ali não poderia ser mais oportuna para tornar suas fotos mais interessantes.

Mas havia alguma coisa que me impelia a continuar caminhando apressado. Eram 16:50 e o ônibus para Mendoza passaria na estrada às 17:00 h. Dei baixa nos Guarda-Parques, colhi informações com um homem que estava sentado ali perto do estacionamento e continuei andando, torcendo para que algum visitante admirado de partida me oferecesse carona.

Mais a frente, vendo que não ia sair carona para os dois últimos quilômetros de estrada de chão até o asfalto, decidi pegar uma trilha achando que ia cortar caminho.
Mas ela não levava direto à estrada, ia em direção a Puente Inca, paralela a estrada e quando percebi, decidi cortar alguns morrinhos para sair no asfalto. Mas já eram 17:15. Eu tinha perdido o ônibus.
O próximo só as 21:00 horas.
Não iria esperar no meio da estrada até as nove e comecei a andar pelo acostamento. Mas não parei de pedir carona. Era desolador caminhar pela estrada com um monte de carros e caminhões apressados a passar por mim… Depois que o corpo acha que chegou, parece que qualquer esforço se torna a gota d’água. Andei mais uns três quilômetros pedindo carona até avistar o lugarejo na beira da estrada chamado Puente Inca ao longe. De onde eu estava, vi a estrada fazendo uma grande curva, passando por uma grande ponte, com uma outra ponte férrea ao lado, que parecia ser um caminho mais curto. Saí da estrada e fui em direção a essa ponte, mas me surpreendi quando comecei a pisar nos primeiros dormentes. A ponte era incrivelmente alta, com uns 50 metros ou mais e entre as madeiras envelhecidas, havia um vão largo por onde eu via o rio barrento e violentíssimo rio lá no fundo. Se eu por acaso caísse daquela ponte e sobrevivesse, as águas congeladas e estrondosas do rio dariam conta do resto. Se não bastasse somente esse cenário amedrontador, andando ali naquela ponte sem corrimão, minhas pernas já cansadas não me passavam nenhuma segurança com a mochila pesada nas costas. Caminhei um pouco pela ponte férrea, mas pisava nas madeiras e muitas delas estavam soltas, balançando sob meus pés, isso me fez desistir da ideia. Além disso, no finalzinho, do outro lado, parecia que havia um trecho sem tábuas, um buraco…

Voltar me desanimou completamente. Larguei a mochila no meio de um campo com uma relva rasteira e fui inspecionar a área. Talvez houvesse alguma forma de atravessar o rio em outro ponto, talvez eu pudesse voltar por cima da própria Puente Inca, mesmo que fosse proibido…
Mas eu beirava as altas e abruptas margens do rio marrom, que tinha um volume tão grande de águas tão rápidas, que lembravam aquelas imagens que fazemos de uma represa estourando. Eu estava imediatamente antes do encontro dos dois rios, então não tinha chance nenhuma mesmo, encurralado. Tentei averiguar mais uma vez a velha ponte da abandonada linha férrea transandina.
Sem a mochila, fui até quase o outro lado, só para confirmar que passar por ali com a mochila pesada ia ser muito arriscado. Já tinha acostumado com as madeiras soltas a cada pisada, mas no trecho onde faltavam várias, eu teria que ir me equilibrando sobre os finos trilhos e ainda bem alto. Nessas horas o orgulho ajuda um pouco também e pensei que não seria caindo daquela ponte a 500 metros do parada de ônibus que eu iria me ferrar depois de tudo…

Voltei pra mochila e fiz o que poderia fazer naquelas horas de desânimo. Dormi. Dormi mais ou menos uma hora com a cabeça recostada na mochila. Um sono tranqüilo, com os barulhos dos carros passando ao longe e o calor do sol ainda a pino das 19 horas. Mas eram 19 horas e o ônibus iria passar as 21. Eu ainda queria fazer alguma refeição naquela quinta-feira.
Mas a vontade era de dormir mais um pouco e permaneci deitado em forma de conchinha como se estivesse num colchão macio. De repente, uma coisa me chamou atenção. Era o helicóptero amarelo do parque voando em direção a Mendoza. Alguém deveria estar muito mal para precisar ser levado direto para a cidade. Alguns minutos depois, o helicóptero retornou e pela segunda vez se dirigiu a Mendoza. Teria acontecido algo grave? Levantei, pus a mochila nas costas e descobri uma pequena ponte embaixo da auto-estrada, com marcas de cascos de mulas, por onde atravessei. A ponte era rente ao rio e estava molhada com a água do rio que  transbordava por cima da murada da ponte.
Quando cheguei em Puente Inca, procurei um restaurante, e o jeito foi entrar com a mochila grandona mesmo e deixá-la no chão, no meio do caminho. Quando descarreguei, um inglês, que estava numa mesa próxima, fez uma piada comparando minha bagagem com sua mochilinha de ataque, que estava pendurada na cadeira.
Mais tarde conversei com ele e com um outro homem que reconheci estar no acampamento base. Comentavam sobre boatos de dois alemães que teriam ‘batido as botas’, motivo da movimentação do helicóptero.
Quando escureceu, o ônibus chegou. Tinha comido tanto que pensei que fosse hibernar até chegar ao meu destino, mas a viagem naquela estrada precária e tortuosa à noite me fez acordar várias vezes nas curvas, ultrapassagens e até numa freada brusca que pareceu quase um acidente.
Em Mendoza, andei pra cima e pra baixo, às duas da madrugada, nas ruas ao redor da rodoviária e perguntei em quase dez hotéis por vaga. Estavam todos lotados e, por indicação de uma hippie, me hospedei num quartinho de 2 x 2, fétido e destruído, nos fundos da casa de uma velha meio doida que tratava de uma dezena de cães doentes. Paguei 10 pesos. Meu dinheiro estava acabando e não me lembrava de jeito nenhum da senha do cartão para sacar mais.

No dia seguinte, eu, Wally , Sebastian e Caro nos encontramos no bar Lúpulo, de sociedade de Sebastian, na agitada rua dos bares em Mendoza. Comemoramos como se os quatro tivessem chegados juntos no topo da montanha, lamentamos a volta de Cláudio, especulamos sobre os acidentes e rimos de nossos narizes pretos e bocas rachadas. Mesmo depois da viagem, as novas experiências continuaram. Quinze dias após a volta, meus pés incharam e assim ficaram por 4 dias, como duas bolas, sem nem entrar no sapato. Fiquei com o dedo anelar esquerdo sem sensibilidade, como se estivesse dormente, por um mês. Surpreendi-me vendo o vídeo que eu fizeram nos momentos em que estava grogue pela altitude. Na hora, não percebia o quanto eu falava devagar e cometia erros.

Analisando minha aventura, vi que na verdade tivemos bastante sorte de pegar uma janela de tempo excelente, exatamente no momento em que começamos a subir a montanha. Costuma-se dizer que no Aconcágua, o melhor é janeiro, quando todos os dias são claros e azuis, mas nesta temporada não foi assim. Telefonando para o Hotel Refúgio no decorrer de janeiro e fevereiro, Anita me contara que nevava muito e o tempo não estava bom. Um “polaco” falecera em decorrência de imprudência e equipamentos inadequados numa nevasca. Também tive sorte de poder alugar a barraca no acampamento base e contar com os amigos cariocas para utilizar a deles lá, já que a barraca que eu arrisquei levar, não suportou nem os ventos dos primeiros acampamentos, quanto mais dos acampamentos superiores. O Aconcágua é conhecido por seus ventos fortíssimos que aliados às baixas temperaturas, são extremamente perigosos. Para se ter uma ideia, a -15º C, com um vento que se sente na janela de um carro a 30 km/h, o chamado vento moderado, vento que somente faria arbustos e pequenas árvores se moverem, a temperatura baixa para o dobro, -30º C.

Em minha próxima experiência com uma alta montanha, a barraca será uma prioridade, juntamente com um fogareiro de combustível líquido, já que atribuo muito da falta de líquido que ingeri à demora para derreter o gelo no fogareiro a gás.

Voltando do Aconcágua, como que vislumbrando um possível futuro, praticamente analisei duas opções para ter como rumo. Descansar um pouco das aventuras, principalmente em alta montanha, já que é um esporte reconhecidamente perigoso, ou aceitar os riscos, como os que acontecem normalmente quando se busca cada vez montanhas maiores ou feitos mais difíceis.

No meu dia a dia, há pelo menos uns sete anos, que sempre evitava as escadas rolantes e elevadores, para aproveitar a oportunidade de fazer um pouco de exercício. Também sempre tive o hábito de dormir no chão, às vezes sem nenhum colchonete. Depois do Aconcágua, passei alguns meses somente aproveitando os confortos da vida moderna e também voltei a dormir na minha cama.

Mas aos poucos fui voltando a ser como era novamente antes da viagem, mas sentindo a falta de um grande objetivo, como o que me acompanhou por alguns anos.

Espero saber sempre a hora de voltar ou parar.

 

 

http://www.trilhaecia.com.br/planilha-de-custo-do-aconcagua/

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