Plaza de Mulas e Cerro Bonete
O acampamento base Plaza Mulas impressiona pelo tamanho. Parece uma cidade medieval, daquelas que eu imaginava em meus jogos de RPG. Tendas de restaurante, as cozinhas, os “bairros” de cada empresa operadora, as “ruas” e as mulas passando com todo o tipo de equipamento no lombo. Depois de me instalar, me informei onde havia internet ou telefone e me indicaram uma grande tenda. Numa “pracinha” ao lado, demarcada com pedras, havia luneta em um tripé apontada para a montanha. Deveria ser um bom meio de acompanhar quem subia ou descia para os acampamentos superiores. Felizmente, a pessoa responsável pela tenda telefônica não conseguiu efetuar as ligações que pedi e a internet não podia ser usada por causa de algum motivo relacionado à energia. Os preços ali estavam salgados, e só fui descobrir depois. Resolvi então aproveitar para conhecer o Hotel Refúgio, que avistava do acampamento base. Tentaria telefonar de lá e procuraria pelos colegas que conheci no acampamento Confluência.
Caminhei 15 minutos e atravessei alguns penitentes – pequenos glaciares que têm o formato de várias agulhas ou estalagmites de gelo aglomeradas. Acredito que seja o vento que dê este formato ao gelo. Estas agulhas formam um tipo de labirinto por onde se anda. Ao chegar no Refúgio, me impressionei novamente com a imponência da construção. É um verdadeiro hotel de dois ou três andares construído de sólidas vigas de madeira e metal com dezenas de fileiras de janelas. Antes de entrar, caminhei pelo entorno procurando a área de acampamento de que Wally mencionara, mas não achei. Dirigi-me à entrada do Hotel e empurrei com força a pesada e grossa porta de madeira, lotada de adesivos de organizações e marcas de equipamentos de montanhismo. Esgueirei-me pela fresta que consegui. Do lado de dentro, me esqueci de que eu havia caminhado três dias e estava a mais de 4000 m de altitude. Apesar de rústico, o ambiente era muito bonito. Duas cabines de telefones ficavam numa ampla sala de estar iluminada por imensas esquadrias de vidro que ocupavam todo aquele lado da parede. Bandeiras de vários países e organizações davam um clima festivo ao lugar. No balcão, depois de pedir para usar a internet, fiquei ouvindo alguém falando em português no telefone, enquanto teclava num laptop e tentava enviar um e-mail nos 15 minutos que meus 5 dólares me permitiam. De repente, notei algo familiar naquele diálogo alheio.
-…um maluco subindo com uma mochila de 50 quilos, eu não sei nem onde ele está!
– Estou aqui! – Respondi, imaginando não ter muitos nesta situação e reconhecendo a voz de Wally.
O homem que estava no balcão do refúgio fez a maior festa ao saber que era eu o brasileiro. Eduardo, como se chamava, me disse que estava todo mundo no hotel comentando sobre um brasileiro que trazia 48 quilos “sin mulas”.
Lembrei-me então de um grupo que passou por mim, numa das vezes que parei numa pedra para descansar. Eram dois homens e uma mulher que ficaram muito impressionados com o tamanho de minha mochila. Ficaram mais ainda quando falei o peso e ofereci que a levantassem. Num sotaque que depois vim descobrir ser basco, me cumprimentaram e comentaram:
– Tu Evereste tranqüilo!
– Maybe… Respondi com este “talvez”, sorrindo, sem saber direito que idioma usar.
Naquela altura calculei que já deveria ter consumido uns 2 quilos de comida, por isso respondi 48 quilos. Devem ter sido eles que ajudaram a espalhar a noticia do homem-mula…
Depois de conhecer as instalações do refúgio, me convenci a acampar junto com meus colegas e fui com Wally que se ofereceu para me ajudar a fazer a mudança do meu acampamento. Wally contou que fizera o trecho até Plaza de Mulas passando muito mal, com vômitos e diarreia frequentes, mas que agora estava melhorando.
No Hotel Refúgio, eu pagava 3 dólares por dia para utilizar uma espécie de refeitório chamado comedor libre, apelidado de comedor dos pobres. A galera que ficava acampada lá nos fundos não pagava o camping, somente esta taxa para cozinhar, fazer as refeições e ficar de bobeira por lá. Ainda de quebra poderia usar o serviço de baño – que significa banheiro! Banho mesmo, chamava-se ducha e custava 11 dólares por 7 minutos.
O comedor dos pobres era assim chamado porque os montanhistas com mais recursos usavam um outro comedor, restaurante, refeitório para comer as refeições do hotel refúgio, ao invés dos miojos e sopinhas do primeiro. De qualquer forma, o clima lá era bem amistoso e passávamos algumas horas jogando conversa fora. Neste dia, Cláudio, que estava melhor disposto, subiu até o primeiro acampamento na montanha, a Plaza Canadá, como parte de seu planejamento de aclimatação. Wally preferiu ficar no refúgio descansando e se recuperando.
Conheci lá um casal de argentinos que fiz amizade também, ele chamava-se Sebastian ou Seba e ela Carolina ou Caro. Estavam com o cronograma um dia na frente de Wally e Cláudio e dois dias na minha frente.
No dia seguinte resolvi me mexer um pouco e decidi subir o Cerro Bonete, com algo em torno de 5000 m de altura com parte de minha aclimatação. Coloquei as botas plásticas para sentir como era andar com elas. Além disso, não é recomendável ascender além da Plaza de Mulas sem essas, que protegem os pés das baixas temperaturas. Me senti um robozinho andando sem dobrar os pés. Subi, atravessei penitentes, águas de degelo e subi mais. Cruzei com um grupo descendo e com uma pessoa sozinha, o que ajudou a me mostrar a direção que eu tomaria, pois estava na dúvida de qual montanha eu teria que chegar.Mas tomei o caminho errado e por vezes eu subia reto por uma rampa íngreme de terra fofa e pedra moída que me fazia maldizer aquele terreno. Para quem quiser treinar, basta encontrar uma duna íngreme de areia e tentar subir. Em algumas ocasiões, fiquei receoso de escorregar, pois já estava ficando bem em pé. Longas dezenas de minutos após, após um pequeno penitente alcancei os blocos de pedra que formavam o cume do monte. Marcas de pisadas indicavam que aquele era um local por onde alguém já havia passado, mas desconfiei que o grupo grande que desceu tivesse passado por ali. Começava a se fazer necessário uma pequena escalada, mas o problema é que as rochas estavam todas soltas. Eu agarrava um bloco e ele se desencaixava. Além do mais, aqueles primeiros passos naquela bota rígida não me transmitiam muita firmeza. Continuei a subir, procurando onde eu cairia, caso eu escorregasse.
Por enquanto eu aterrizaria no meio do penitente. Deveria faltar uns 20 metros para o cume, mas encontrei cada vez mais pedra esfarelando, e se desmanchando, na minha cabeça veio a estória do escalador solo que teve sua mão presa sob uma grande rocha e precisou amputá-la. Olhando ao meu redor, já conseguia avistar um horizonte de cordilheira branca. À minha frente, o Monte Aconcagua se mostrava iluminado com uma cor laranja pela luz do sol da tarde, revelando suas rotas de subida. Achei que aquele visual já era suficiente pra mim e iniciei minha descida.
E que descida fantástica! O que eu subi xingando, agora eu descia com um sorriso na cara. Me sentia esquiando novamente. O terreno íngreme e arenoso deslizava sobre meus pés e aproveitei pra ganhar tempo. Não precisava e nem conseguia correr, mas bastava alongar meu passo, me demorando em cada pé, que escorregava e afundava no cascalho fino. A bota rígida protegia os pés e as polainas evitavam a entrada de terra e pedras. Morro abaixo, patinando, enquanto a poeira subia. Em certo momento, não consegui avistar completamente o caminho, que pareceu ficar mais íngreme, e diminui um pouco a velocidade. Realmente, era um trecho mais em pé e precisei usar o quinto apoio, a bunda. Desci escorregando assim e pouco tempo depois estava de volta ao Hotel Refúgio, encontrando com Seba e Caro que, naquele dia, levaram seus equipamentos até o acampamento dois, Nido de Condores, e com Wally e Cláudio, que levaram parte do equipamento deles ao acampamento um, Plaza Canadá.
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