Aconcagua Sin Mulas

Costa Brava

No dia seguinte acordei por volta de 8 horas da manhã, com a sensação de uma boa noite de sono. Olhei no termômetro e faziam 4 graus centígrados, mas ao longe, via algumas crostas de gelo sobre as pedras que não estavam lá no dia anterior.

Por estar num vale, o céu já estava bem azul e as montanhas a minha frente já eram banhadas pelos raios do sol, mas onde eu estava continuava frio. Não animava sair do saco de dormir para começara a andar.

Mas mulas e caminhantes já passavam por mim, um montanhista solitário, veio até mim para saber se eu estava bem e perguntou se eu queria água. Agradeci, mas não aceitei.

Depois me lembrei que minha água acabara na noite passada e catei algum gelo na crosta congelada de um córrego para derreter no fogareiro. O gelo, assim derretido, fazia água mais limpa do que a barrenta água dos rios.

Por volta das dez horas da manhã eu estava andando novamente. Descobri que não precisava atravessar o rio, havia um caminho que beirava precariamente o barranco na lateral do vale. Na realidade, caminhava-se sobre um monte de terra e pedras que desmoronaram. Por algumas vezes achei que iria me desequilibrar, escorregar e meter o pé na água gelada do rio. Por sorte não aconteceu. Um grande grupo de pessoas passou por mim e os reencontrei descansando alguns minutos depois na Pedra Ibanez, o abrigo que tanto busquei no dia anterior.

Passei por eles, mas parei mais adiante numa pedra que me possibilitava sentar e ainda apoiar a mochila sem precisar tirá-la. Logo depois da pedra, o caminho se afastou do fundo do vale, subindo pela encosta lateral direita.

Neste segundo dia rumo a Plaza de Mulas, as subidas se tornaram mais íngremes até por fim culminar num local onde havia os destroços de um abrigo militar abandonado. Neste lugar era localizada a antiga Plaza de Mulas.

Inspecionando os destroços do abrigo, me admirei da robustez de sua construção. Que violência teria sido necessária para pôr abaixo aquelas grossas vigas de metal que um dia sustentaram o teto. A maior parte da construção era somente composta de grossas paredes de tijolos. Os dois cômodos que ainda tinham cobertura, por não receberem luz do sol, abrigavam uns blocos de gelo gigantes que ocupavam todo o espaço, lembrando o meu congelador que fica meses sem degelo.

Se antigamente as mulas iam só até ali, hoje em dia elas têm de enfrentar mais um desafio. Parei alguns minutos ali, observando este, que deveria ser o últimos trecho antes do acampamento base. Um barranco de 200 metros, chamado Costa Brava, por onde a trilha serpenteava. Com a filmadora, aproximava para tentar descobrir o melhor caminho. Estava em dúvida, pois havia uma pessoa solitária parada bem à esquerda, numa outra subida, que depois vim saber que se chamava Costa Amarilla por causa do tom amarelado do morro. Um caminho que leva diretamente ao Hotel Refúgio. Ver aquela pessoa como uma formiguinha, de tão distante, parada no meio daquela parede me deixou um pouco apreensivo pensando se eu teria de passar por ali. Segui a trilha e o caminho mais marcado me levou ao morro da direita.

Comecei então minha lenta subida por aquele caminho erodido e escorregadio. Neste momento, eu estava completando oito horas de caminhada e o corpo dava todos os sinais de exaustão. Além da inclinação do caminho eu era obrigado a planejar cada passo, pois a poeira fina fazia deslizar muito. Progredindo desta forma, bem lentamente, passei em alguns trechos delicados em que eu era obrigado a olhar para baixo, já imaginando qual seria a melhor forma de rolar abaixo, caso não conseguisse evitar. Numa destas vezes, vi um grupo de umas seis pessoas que subia abaixo de mim de forma lenta. Imaginei que o grupo estaria mantendo uma distância segura, caso eu escorregasse. Enquanto isso, eu quase vinha abaixo mesmo. Com os pés deslizando num trecho mais íngreme e sem apoio, com os bastões que eu cravava fortemente no chão já não me segurando, agarrei algumas rochas na minha frente, para evitar escorregar. Para isso fui obrigado a me inclinar, o que fez com que o peso da mochila recaísse sobre meus braços. Me vi pelos olhos dos que me observavam mais abaixo. Com a força que tive que fazer nesta posição, soltei uns grunhidos, mas pelo menos consegui mais estabilidade. E o trecho mais complicado passou. Aquela mochila tornava tudo mais difícil. Sem carga, daria para se subir e descer correndo. E nem as mulas escapam  do perrengue neste ponto, algumas carcaças e ossadas repousam lá em baixo.

Quando finalmente cheguei no topo, descobri que o acampamento ainda estava longe, talvez uma hora ou mais e fiz nova parada estratégica numa rocha para descansar e tirar forças de não sei onde. O grupo que vinha atrás passou por mim com passos muito lentos e sincronizados, mesmo naquele terreno mais plano, e percebi que uma mulher no final da fila não estava bem. Este grupo também era obrigado a parar com freqüência, para que a menina se recobrasse. Por um lado, era muito legal o apoio que todos os outros membros davam se mantendo unidos e tão próximo. Por outro, a desvantagem de se ter que caminhar em grupo para ela era evidente. Aquela menina tinha um metabolismo diferente e necessitaria de mais dias em altitudes menores, o que teria atrasado os outros membros.

Apesar de tudo, eu ainda progredia mais rapidamente que estas pessoas sem peso, mas aguardei ali até que estes se distanciassem. Eu estava na reta de chegada e agora conseguia ver o acampamento ao longe. Um desce e sobe, cruzei um córrego congelado e o terreno estava mais plano agora. Mas eu parecia que tinha usado todas as minhas reservas. Não conseguia caminhar mais do que 20 metros sem ter que parar e debruçar a mochila sobre meus bastões para descansar e aliviar a dor que as alças da mochila já causavam nos meus ombros e cintura. Pés doloridos, pernas moles. Por sorte continuava com o estômago vazio, pois as ânsias de vômito eram freqüentes.

Pequenos flocos de neve começaram a cair do céu e um guarda-parque parado no meio do caminho me cumprimentou e me animou dizendo que eu estaria próximo, a menos de 30 minutos do acampamento. Perguntou se eu tinha feito bivaque ou se eu tinha conhecimento de mais duas pessoas que tivessem dormido pelo caminho. Os guardas mantêm um certo controle do pessoal que se desloca entre um acampamento e outro através de informações via rádio. Talvez o helicóptero do parque, que passou  pela manhã, tenha me visto também, ao sobrevoar o local que pernoitei, Playa Ancha, rumo ao acampamento.

Em menos de meia hora cheguei à Plaza de Mulas. Neste dia caminhei 9 horas no total. Depois de fazer o check-in, fui instruído a contratar um serviço de utilização de banheiro – baños –, obrigatório no acampamento. Procurei a parte destinada à empresa Inka e paguei 3 dólares para usar o banheiro por um dia. Com isso, também pude armar minha barraca dentro do cercadinho destinado a seus clientes. Perguntei sobre refeição, jantar para aquele dia, mas para isso eu teria de ter reservado com mais antecedência. Reservei para o dia seguinte.

Preparei minha sopa de polenta com macarrão e dormi mais uma noite com ventos que achatavam minha barraca de encontro a meu rosto.

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