Bivaque
Comecei a minha caminhada rumo à Plaza Francia as 10 da manhã, depois de recolher meu acampamento. O início é plano, mas logo tem se que atravessar o profundo vale do rio que desce da direção da face sul. Percebi que seria penosa, a subida do outro lado, apesar de avistar o caminho todo, parecendo assim tão perto e curto.
A descida do vale foi rápida, apesar de ter sido feita com bastante cuidado para não me escorregar pelas suas encostas íngremes onde a trilha de poeira fina tal qual talco era talhada.
No fundo do vale, comecei a tentar descobrir como eu faria para atravessar o rio que corria violentamente pelos irregular terreno pedregoso. Procurava um trecho onde ele fosse mais largo, distribuindo assim a força do fluxo das águas, para que eu não fosse arrastado. Sinceramente, só o fato de tirar as botas e molhar o pé na água congelante já era desanimador, quanto mais ser tragado pelas águas até Horcones…
Avistei então o que parecia ser destroços de uma ponte no alto de uma grande rocha. Não era possível que eu teria que atravessar andando aquele mesmo rio que levou aquela ponte de ferro. Fui na direção dos destroços para descobrir aliviado, mais adiante uma nova ponte, desta vez ainda inteira! Atravessei a fina construção lentamente, usando o corrimão balançante para dar equilíbrio. Pisava com cuidado nas madeiras espaçadas enquanto olhava o rio amarelado correndo estrondosamente por baixo.
A subida do vale no outro lado foi extremamente cansativa e caminhei muito lentamente. No outro lado me deparei com uma dificuldade a mais. No primeiro dia, caminhei com o vento a favor até Confluência, mas agora, me via quase freado pelo atrito da força do vento contra a minha mochila, que de tão volumosa, funcionava como um pára-quedas. Este, que era o trecho mais plano, tornava-se muito difícil por causa do vento e pelo tipo de terreno pedregoso e irregular. A partir dali, por diversas vezes, a trilha sumia e eu simplesmente avançava pelo fundo deste outro vale tropeçando e cambaleando pelas pedras que me davam a impressão de caminhar num leito seco de rio. Em certo momento, interpretei erroneamente o mapa que eu consultava sempre e me dirigi mais a direita do vale, onde me encontrei de repente no meio de pequenas dunas de areia! Já não bastasse o peso e o vento contra eu ainda tinha que caminhar subindo descendo na areia fofa.
Estava começando minha provação. O pouco que andei naquele terreno pareceu não terminar nunca. Tomei uma diagonal consegui voltar paras as pedras, que apesar de tudo, ainda eram mais fáceis de pisar. Horas se passavam e eu avançava torcendo para encontrar lugares onde eu poderia descarregar minha mochila. Por causa do peso, era muito difícil colocá-la nas costas, se eu a descarregasse no chão. Eu precisava sempre de uma pedra ou barranco para poder sentar ou apoiá-la, me desvencilhando assim das suas alças.
Enquanto andava , percebi um homem sozinho voltando na direção oposta. O homem parou, agachou e sacou umas fotos com uma máquina sofisticada de grande objetiva. Entendi que eu fazia parte de sua foto e pedi-lhe em inglês que tirasse a mesma foto com a minha câmera. A foto ficou realmente muito boa e a utilizei mais tarde na ilustração do DVD do filme que produzi.
Aproveitando a aproximação, perguntei se tentara o cume, ao que ele me respondeu afirmativamente. Ressaltou ainda, como melhor tática, iniciar o ataque do acampamento 3, Berlim. Despedimos-nos e senti uma mistura de inveja e admiração daquele homem que voltava pra casa com sua missão cumprida. Conseguiria eu também estar lá no topo? O sonho, que agora eu vivia em carne e osso, começava a ter um aspecto mais real.
Mas comecei a sentir os efeitos do tempo que eu já caminhava, meus pés doíam, as paradas para descanso se tornavam mais freqüentes, a vontade de voltar a andar depois delas ficava cada vez menor, olhava o mapa a todo o momento para tentar imaginar onde eu estaria. A essa altura eu não tinha mais a ilusão de que chegaria ao acampamento base ainda naquele dia, procurava um abrigo chamado Ibanez, próximo a uma pedra de mesmo nome, que figurava no meu mapa mais ou menos na metade do trecho total. Eu caminhava procurando o final da curva no vale que eu me encontrava, o local onde acharia esta área de acampamento, mas a curva nunca acabava. Olhava o formato das montanhas ao meu redor e tentava identificá-las em minha carta topográfica, onde estaria eu que não chegava nem ao menos neste acampamento Ibanez? Caminhava por 8 horas e não teria chegado nem na metade do caminho? Para minha alegria, avistei o que parecia ser uma pedra isolada naquela grande extensão e no formato de uma bancada. Estava ha uns 500 metros de distância e parecia ser ideal para descansar e aliviar as dores. Mesmo somente para alcançar esta rocha, foi incrivelmente penoso e demorado. Comecei a sentir ânsia de vômito e acho que só não vomitei realmente porque não tinha muito no estômago mesmo. Durante o dia, não almocei nenhum tipo de comida quente e estava à base de barra de cereais e coisas do gênero. No meu estado, o simples fato de percorrer aqueles poucos metros, tornava-se agora um desafio. Ainda parei pelo menos uma vez, me inclinado para frente e apoiando parte dos 49 kg da mochila nos bastões de caminhada, como fazia para aliviar o peso dos ombros e da cintura sem precisar ter o enorme trabalho de me desprender e prender a ela.
Ali, naquela rocha, estudei mais uma vez o mapa e deixei de receber os raios do sol, que agora era bloqueado pelas altas montanhas que me rodeavam naquele trecho um pouco mais estreito do vale. O local canalizava o vento, que agora estava mais forte também e fui obrigado a vestir a calça anorak por cima das outras e usar as luvas de fleece nas mãos até então geladas, mas desnudas. O vento frio entrava pela lateral dos meus óculos fazendo os meus olhos doerem e troquei os óculos pela máscara da Uvex.
Depois deste descanso, resolvi que ainda poderia caminhar mais um pouco e carreguei a mochila novamente e tomei minha direção. Não caminhei muitos metros e parei de frente ao rio, que acompanhei por todo o tempo, mas que agora fazia uma curva me fechando e seguindo até encostar no barranco da lateral direita do vale. Deveria ser este um ponto no mapa onde a trilha atravessava o rio. Mas não seria agora escurecendo e com aquele vento congelante que eu entraria naquela água com temperatura próxima de zero. Voltei para a rocha onde descansei. Deveria servir como uma boa proteção para o vento. E parecia mesmo que alguém já devia ter dormido ali. O terreno era muito irregular, não permitindo armar uma barraca, mesmo pequena como a minha. Mas havia um espaço que cabia uma pessoa deitada certinho ao longo da rocha e que parecia ter sido limpo, com as rochas removidas para permitir que alguém pudesse ali deitar. Cansado como estava, não fiz mesmo questão de dormir na barraca, mesmo num local plano, era cansativo ter que carregar pedras para prender as amarrações, já que os grampos não perfuravam o solo rochoso.
Estendi meu isolante, desenrolei meu saco de dormir, tirei minhas botas e meias molhadas de suor, vesti meias secas de lã e me aninhei no meu casulo. Espalhei minhas coisas ao meu redor; termômetro, lanterna, biscoitos, água. Fechei o capuz do saco totalmente, deixando praticamente só os olhos e nariz para fora e adormeci rapidamente olhando o céu estrelado. Torci para que assim continuasse, para que não nevasse ou que o vento não mudasse de direção.
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