A Parede Sul
No dia seguinte, me despedi dos colegas cariocas que partiam para Plaza de Mulas. Wally levava uma sacola na mão. Havia uma dúzia de ovos dentro! Não consegui imaginar se eles resistiriam às próximas 8 horas de caminhada dos dois.
Comecei a me preparar para visitar a parede sul do Aconcágua. Mais ou menos do lado oposto da face por onde eu tentaria chegar ao topo. Esta visita serve fundamentalmente como etapa de aclimatação, forçando o corpo a se adaptar aos 4100 m que passará a habitar nos próximos dias. Coloquei pouca coisa na mochila, inclusive água, que imaginei ter ao longo do caminho.
Fechei a barraca e comecei a andar, tomando o vale da direita, por onde desce as águas de degelo do glaciar sul. Logo de início, já se percebe ao longe um pedacinho do cume e da face gelada da montanha. Imaginei que assim sem peso seria uma caminhada fácil e rápida.
Horas, curvas e montes de subidas depois, a paisagem parecia que não tinha mudado muito, e a face sul continuava distante e descortinando-se muito lentamente por de trás de uma outra grande montanha à esquerda. Comecei a perceber a grandiosidade do lugar. A dimensão das coisas ao meu redor era tamanha, que eu era facilmente iludido com a impressão de proximidade.
Mas o que chegou rápido mesmo foi o final da água na garrafa de 700 ml que eu levara.
O caminho que eu tomara, estava subindo pela encosta direita do vale e se distanciava da água alaranjada do glaciar, lá no fundo do vale. As montanhas ao meu redor continuavam a surpreender pelos contornos abruptos, pela variação absurda de cores e pelas dimensões. Rochas verdes, amarelas, brancas, marrons, vermelhas, negras.
Em alguns trechos, o terreno me fazia imaginar como seria o solo de marte, plano, avermelhado; com rochas espalhadas por toda a extensão. Aquelas pedras jogadas por todo canto davam a ideia de um local que sofreu uma grande explosão.
Finalmente cheguei ao mirante da parede sul. Deste ponto, já se tinha a visão total da montanha por este temível lado, palco de grandes conquistas e tragédias e para sempre ligado à estória de montanha no Brasil pela morte dos nossos três montanhistas.
Fiquei ali muito tempo, naquele local imenso, onde só havia eu. Era tarde, e a maioria preferia fazer o percurso de manhã. Abrigado do vento, numa rocha, me entretive com o silêncio ocasional e aproveitei aquela ocasião por longos instantes. Não voltaria a pisar, estar, sentir, vivenciar estas experiências por muito tempo após voltar para minha terra. Recordei-me de um momento parecido quando uma vez, na Chapada Diamantina, fui até a base do Cachoeirão, a um dia de caminhada do Vale do Paty, um gigante anfiteatro, por onde escorrem várias quedas de água, envolvendo com esse cenário, o caminhante.
Esse tipo de lugar tem o poder de nos fazer sentir algo que não pode ser compartilhado, descrito, apagado.
Mas eu ainda não havia chegado a Plaza Francia, o acampamento de onde partem as expedições para escalar a parede sul. E voltei a andar. Neste trecho, o caminho era mais confuso e eu já sentia um esgotamento grande. Sentia muita sede e cogitei várias vezes beber a água cor de sangue que corria das montanhas laterais. Cheguei numas bandeirinhas destruídas pelo vento, com uma fitinha nas cores da bandeira da França e deduzi ser a Plaza Francia. Como era de se esperar, nenhuma viva alma por lá também.
Ali, percebi que eu ainda continuava muito distante da montanha, se eu partisse dali, provavelmente ainda levaria várias horas até começar a subi-la realmente.
Registrei alguns minutos de vídeo com minha filmadora e aproveitei o zoom para aproximar a montanha. Tentava imaginar as rotas prováveis para a escalada suicida. Quanto mais eu aproximava, mais eu descobria que os pequenos detalhes que eu conseguia distinguir, eram na verdade imensos blocos de pedra ou de gelo maiores até que alguns prédios. Um mundo imenso. Que aventura não deveria estar ali no meio daquela parede.
Aquele acampamento estava em torno de 4000 m de altura e como o topo da montanha estava a quase 7000, comecei a empilhar mentalmente as montanhas com até mil metros da minha cidade na frente da imensa parede.
Parei de filmar e estava ali observando as montanhas ao redor, quando ouvi um estrondo muito alto, que me assustou. Virei-me rapidamente, procurando o trovão ou rocha caindo e vi uma fumaça na parede. Era uma avalanche. Em aproximadamente uma hora que lá permaneci, presenciei duas, que aproximadas pela câmera, se mostravam enormes. Minha cabeça já pesava, tirei algumas fotos com a câmera digital. Estas sofreram algum tipo de problema com o reflexo do gelo, dando a impressão que a paisagem derretia com um brilho esverdeado. Um outro estrondo, e virei assustado novamente, procurando avalanches. Desta vez foi uma rocha se desprendendo de uma montanha próxima e rolando centenas de metros até se juntar a tantas outras no chão.
Voltei.
A volta foi bem penosa, a falta de água me deixou em más condições, cansado e com dor de cabeça. Na ida, fui meio desleixado, e deixei o rosto descoberto, o sol, o frio e o vento fizeram seu trabalho. Sentia dor de ouvido, dor de garganta e meus lábios estavam rachados ou cortados. Foi um alívio quando pude me aproximar do rio e beber a mesma água que alimentava o acampamento. Cheguei em Confluência às 22:00 horas, já escuro.
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