Pico Humboldt

A Escalada que Virou Travessia

O Teleferico de Merida

Quando finalmente acordei da longa noite que eu tive, me deparei com um belo dia ensolarado de céu azul e quando saí da barraca e olhei ao redor, me assustei. A neblina da noite anterior cedia espaço a uma outra paisagem. Lá estava a estação do teleférico, exatamente na direção que eu imaginava, porém, com um detalhe: ela estava encravada no topo de uma parede de rocha! Estremeci tentando imaginar o que acontecera com Emília. Certamente ela não passou por ali à noite. Mesmo de dia já era difícil tentar descobrir qual seria o caminho…

Comecei a levantar meu acampamento e arrumar a mochila preocupado com a garota. Em certo momento me virei e, surpreso, vi Emília sentada no final do grande platô, a uns cem metros de mim como se fosse a visão de um fantasma. Fiquei contente por ela não ter desaparecido, mas, por outro lado, isto significava que ela passara algum perrengue a noite… Fui caminhando em sua direção e ao chegar perguntei:Obstaculo

– Você está bem?

– Não sei… estou confusa… Não consegui achar o caminho… – Respondeu em meio a lágrimas.

– Está com sede? Tem água?

– Eu bebi. Mais a frente tem outro acampamento onde dormi e tinha água.

Emília tinha feito bivaque, dormido somente com o saco de dormir, e passado muito frio durante a noite, acordando coberta de gelo.

Voltei para terminar de me preparar e logo ela já não estava lá. Provavelmente ela deve ter vindo até mim para se certificar de que eu não tinha voltado ou tomado outro caminho, deixando-a sozinha na montanha. Logo eu já caminhava subindo a encosta onde, na noite anterior, a vi desaparecendo na névoa. Mais alguns minutos caminhando e eu chegava numa área de formato circular, protegida por pedras que formavam uma espécie de parede de dois palmos de altura. No centro, sobre uma rocha, um belo garrafão de plástico azul com água pela metade deixado por uma boa alma. Emília esperava junto com sua mochila ali.

Emilia contou que esteve rodando por lá, procurando o caminho, e pediu a luneta para tentar achar o melhor lugar naquela grande parede de pedra. Falou que parecia ter um caminho sinalizado por totens que subia a direita, mas que ela achava que levaria para o verdadeiro Lago Timoncitos. Eu tratava de sorver alguns goles de água que desciam bem na hora que a sede já começava a aparecer. Perguntei se ela tinha água reserva e com sua afirmativa, enchi meu reservatório de água da mochila com o que ainda restava no garrafão, que ficou lá vazio.
Emília comentava sobre marcas de cor laranja que ela conseguia ver com a luneta e formavam uma sequência. Ao usar a luneta, só consegui identificar uma dessas marcas e argumentei que poderiam ser liquens ou qualquer outra mancha. Eu apostava num caminho que começava bem definido mais abaixo, mas que subiria por uma cascalheira talvez não tão fácil. Emília pegou sua mochila e partiu. Coloquei a minha nas costas e fui em direção da parede, descendo, pulando de pedra em pedra, rumo ao caminho que eu consegui identificar. Ao olhar ao redor, entendi que Emília tinha ido em direção das marcas laranja e já galgava algumas pedras, parecendo, para mim, perigosamente exposta a uma queda.
– Emília, por favor! – Implorei, já mudando minha direção e subindo com ritmo apressado para verificar o ponto onde ela entrara na parede.
– Tem caminho por aí? – Insisti.
– Sim. – Ela confirmava finalmente a passagem descoberta por ela.
Enquanto isso eu encontrava a primeira marca laranja que realmente indicava o início de um trepa-pedra de certa forma até bem confiável. Alguns degraus e uma nova mancha laranja indicavam que aquele era o caminho correto. Pedras desgastadamente pisadas, marcas de tinta na rocha e um caminho relativamente fácil de passar me tranquilizavam até que vez ou outra ele se aproximava de uma queda vertiginosa. Cortei transversalmente a ladeira de cascalho num ponto mais alto e olhei pra baixo, imaginando o quanto seria ruim subir por ali caso eu tivesse usado o caminho que eu imaginara.

Fomos assim procurando manchas coloridas na rocha ou desgaste de pisadas até avistarmos uma espécie de poste mais acima. Aquilo me fez imaginar que estávamos próximos do teleférico. Ali devia ser o fim de tanto trepa-rocha e eu imaginava que encontraria um grande platô após… Mas para chegar lá tínhamos que subir por uma canaleta muito escorregadia e íngreme. Nesse ponto eu estava na frente e me equilibrava em cada curta passada, auxiliado pelos bastões, onde eu punha uma força tremenda. Da metade da canaleta em diante, várias falhas na rocha da lateral esquerda tornavam mais fácil escalá-la do que tentar subir por aquela espécie de escorrega de areia. Nesse ponto eu ia à frente e, quando finalmente alcancei o poste, tive uma desagradável surpresa. Para quem já esperava ver a estação do teleférico ou qualquer tipo de construção, pavimento, eu me encontrava no topo de uma espécie de agulha de pedra, colada a um maciço maior.

Que inferno! E nem ao menos dava para saber qual era o caminho… Não tínhamos mais visão da estação do teleférico e aquele poste não tinha nada a nos dizer, talvez somente de que tivéssemos que ter chegado ali…

Eu achava mais provável que tivéssemos que descer pelo lado oposto de onde subimos, e talvez de lá conseguíssemos galgar outra encosta e talvez chegássemos a algum lugar. Emília chegava ao ponto onde eu me encontrava e tivemos que nos espremer para encontrar uma forma de ficarmos os dois naquele lugar comprimido entre uma parede e três despenhadeiros. Emília tentou descobrir algum caminho entre algumas fendas e blocos e sumiu por alguns instantes, somente para voltar dizendo que encontrara alguns abismos. Decidimos descer pelo lado oposto, mas como estávamos já desgastados depois de tantos dias e como eu tinha certeza que estávamos muito perto, sugeri que usássemos a corda a partir dali. Além disso, o trecho que teríamos que desescalar estava bem íngreme e cheio de areia e pedras soltas. Emília se posicionou, meio se apoiando em mim e disse que não estava se sentindo bem. Enquanto ela tinha ido procurar algum caminho, eu já colocara a cadeirinha e tinha laçado um bloco de pedra para me ancorar. Agora eu não tinha muito tempo. Ela mal me avisava que sua pressão estava baixando e já começava a fechar os olhos, abaixar a cabeça e se recostar. Pedi que passasse rapidamente uma fita unida por costura ao redor do tronco, sob os braços para que eu pudesse prendê-la a mim no caso de algum desmaio. Por sorte não foi nada grave e depois de uns minutos de descanso e alguns biscoitos salgados ela já estava melhor e vestindo a sua cadeirinha também.

Assegurei sua desescalada, liberando a sua corda lentamente e depois pedi que ela fizesse o mesmo para mim, só que recolhendo minha corda enquanto eu passava esta ao redor de bicos de pedras e os soltava mais abaixo com um movimento de ondulação. Agora precisávamos descer por uma pilha de pedras soltas e tomar a direita numa outra rampa que subia. Primeiro desceu ela e pedi que se prendesse em algum lugar para que eu fizesse o mesmo e continuasse pela nova rampa. Na minha vez, me senti como naquelas piscinas de bolinhas para crianças, só que com grandes blocos que cediam sob meus pés e rolavam ameaçadoramente em direção a um despenhadeiro. Passei por Emília, que se abrigava numa curva das pedras soltas e agora eu subia pela outra rampa que era um pouco mais íngreme.

escalandoFiz duas proteções, laçando blocos de pedra e “costurando” minha corda para diminuir minha queda. Com esta segurança eu me sentia muito mais tranquilo, apesar desta última rampa ser mais íngreme. Encontrei um emaranhado de vergalhões do tamanho de um automóvel parecido com um grande novelo semi enterrado no cascalho e tive certeza que aquilo não sairia de jeito nenhum dali. Clipei o mosquetão de minha costura diretamente num desses vergalhões da espessura do meu dedo mínimo e passei minha corda. Aquela foi a melhor proteção que eu já fizera. Além de forte, ainda amorteceria o impacto de minha queda como uma grande mola. Encontrar aquele tipo de entulho me dizia que estavamos próximos do fim do nosso caminho. Continuei subindo até esticar a corda de setenta metros, bem no final da rampa e ao lado de um bloco de rocha, que abracei com fitas para me ancorar. Fiz a segurança de Emília dali que subiu sem maiores problemas. Ainda ancorado, enquanto enrolava a corda, perguntei o que a menina via, uma vez que esta havia passado por mim e continuado.

A informação de que o teleférico estava ali foi um presente.

– Não vamos mais precisar da corda? Não tem mais escalaminhadas?

Pico Humboldt
Pico Humboldt – Venezuela

DSC00153Eram umas três da tarde e chegávamos ao Pico Espejo, onde encontrávamos a última estação do gigantesco teleférico de Mérida desativado. Grandes peças de aço, lixo, cabos de aço da grossura do meu braço jaziam abandonados e sujos de graxa  na rocha nua da montanha e em plataformas de concreto. Uma grande e forte construção de dois andares lembrava um abrigo de montanha e outras menores abrigavam equipamentos e medição meteorológica. TelefericoMais afastada, uma estátua de Nossa Senhora das Neves, padroeira dos alpinistas, nos observava discretamente enquanto rodávamos pelo lugar, procurando uma mísera torneira ou qualquer outra fonte de água. Só faltava essa. Queríamos tanto chegar aqui, achando que encontraríamos água e agora nada! Numa pequena cabana, encontramos boa quantidade de comida: macarrão, molho de tomate, chocolate! Essa cabana era meio sinistra, pequena feia e meio destruída.

Nossa esperança era tentar entrar na estação do teleférico para procurar por água. As portas estavam trancadas e até me arrisquei a verificar as portas que davam para o abismo, por onde entra a galera que vem do bondinho, mas estas também estavam trancadas por dentro.

Rodeando a estação, vi uma escada podre no chão e imediatamente olhei para cima, descobrindo uma janela aberta no segundo andar. Apoiei a escada molenga e podre com alguns degraus banguelas e pedi para Emília firmá-la da melhor maneira. Comecei a escalada da escada mais tenso do que nos setenta metros da última rampa, pisando somente no ponto onde os degraus eram pregados e não no meio deles. Com os pés no topo da escada, alcancei a janela e me esgueirei com cuidado por ela até me descobrir bem em cima de um vaso sanitário lotado de Mérida! Eu descia dentro de uma das cabines do banheiro das mulheres e apoiava-me pisando cautelosamente nas bordas do vaso, prendendo a respiração.

Agora eu precisava: abrir a porta da estação para Emília entrar além de achar água! Mas das torneiras, nada escorria. Mau sinal…

Começava nesse momento a chover e eu procurava uma porta que eu conseguisse abrir por dentro. Logo já estávamos os dois lá dentro investigando tudo que pudesse nos ajudar. A estação consistia num grande salão com o interior todo em madeira com dois corredores laterais, por onde entravam e saiam os visitantes vindos dos bondinhos. Grandes janelas com vidros duplos banhavam o ambiente com luz e proporcionavam uma vista incrível de quase todas as montanhas ao redor. Pico BolivarO Pico Bolívar estava ali, parecendo ao alcance de nossos braços. Mas eu sabia que se eu algum dia eu realmente vier a tocá-lo, não será tão cedo. No segundo andar,além do banheiro, uma cantina inacessível por causa de uma porta trancada.

Dois sistemas de cabos partiam de plataformas metálicas e quase desapareciam antes de chegar na estação Loma Redonda que ficava a  três quilômetros dali. Bem no meio dos cabos, dois bondinhos pairavam imóveis sobre o vazio.
Ao olhar em outra direção, um susto. Tinha um homem no topo daquele cume na estatuachuva?

Outro pico confirmava o curioso costume dos venezuelanos de fixar estátuas no topo de suas montanhas. O Pico Bolívar tem um busto de Simon Bolívar no topo. Esta outra era a figura de um homem de corpo inteiro segurando uma espécie de bastão longo.

Dentro da estação ainda encontramos um aposento que servia de enfermaria, com várias máscaras de oxigênio enfileiradas para socorrer os turistas que chegavam a 4.500 metros de altitude desavisados. Num parapeito encontramos o livro de ocorrências médicas e nos assustamos com sua grossura. Folheando suas páginas, milhares de casos de dor de cabeça, falta de ar, tontura provenientes da altitude. Teria sido esta a razão do fracasso do teleférico megalomaníaco? Num balcão do salão, encontramos meia garrafa de água, manteiga, pão e num outro lá estava uma linda garrafa completamente cheia de gasolina! Podíamos fazer comida quente.

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Fizemos a enfermaria de quarto enquanto a chuva se transformava em granizo, deixando tudo lá fora branco. Abrigávamos-nos ali por ser um cômodo menor e mais quente. Que sorte não estarmos no meio do caminho sob aquela chuva de pedras!  Durante a noite fomos utilizando a água dos umidificadores das máscaras para beber e cozinhar.

De madrugada, saí para ir até a cabana buscar meio litro de água que ainda havia numa garrafa lá e tive uma bela visão das cidades iluminadas nos pés das montanhas. Lembrei da Serra Fina e as luzes de todas as cidades que costumamos ver à noite do Capim Amarelo.