Vencidos por nós mesmos
Emília pediu que eu reparasse sua mochila que vinha descosturando no ponto onde a armação de alumínio era presa. Esta barra de metal começava a sair, machucando a menina e deixando a mochila torta.
Ao abrir o meu potinho de costura descobri que tinha tirado a agulha de lá! O jeito foi desencapar uns arames de saco de pão que eu tinha e reparar o defeito costurando com este arame fino. Ficou bom e agüentou até o fim.
Recomeçamos nossa tarefa de alcançar o Lago Timoncitos, citado na nossa carta. Após alguns trepa-pedras e descidas, a trilha se tornava plana e larga, totalmente diferente da parte rochosa da cadeia de montanhas que cruzamos. Numa parada para descanso, olhávamos para trás tentando identificar o caminho que fizemos em meio a tanta pedra. Um tracinho bem no alto desta cadeia me fez acreditar que uma pessoa talvez estivesse vindo mais atrás da gente, mas ao tomar nas mãos uma pequena luneta que eu levara, consegui identificar uma cruz, talvez no ponto correto onde tivéssemos que ter cruzado. Deveria ser no topo da canaleta de cascalho. Mais tarde, procurando fotos desta travessia na internet, constatei ser realmente o topo da canaleta. Então, na realidade, nós tomamos um caminho alternativo ao abandonar esta que deveria ser a rota mais segura ou mais rápida.
Após uma pequena elevação, já caminhávamos sobre um solo coberto de uma relva verde, rasteira e pisada, quando chegamos a uma área aberta, parecida com um local de acampamento, mas encharcado. Aproveitamos para descansar ali e fui verificar nosso mapa. A laguna Timoncitos, era a única que não trazia uma representação gráfica de um laguinho, somente constava o seu nome na carta. Isso dificultava descobrir sua exata localização. Analisando as informações da carta, comecei a acreditar que a laguna Timoncitos pudesse ser aquele local mesmo onde estávamos, uma vez que havia um desnível de uns 100 metros mais a frente no mapa tal qual eu via no morro em frente.
Tentei explicar minha teoria para Emília que me cortou dizendo que não daria para saber que aquele morro tinha 100 metros, e quando tentei concluir o meu raciocínio a menina explodiu novamente dizendo que eu só fazia o que eu queria. Emília recomeçou a caminhar ainda discutindo algo como “eu devia perguntar ao bezerro aonde ir”. Se a situação não fosse tensa seria até engraçado. Realmente, a essa altura, parecia que somente nós vagávamos pelo Parque Nacional Sierra Nevada. Havia terminado o feriado de Carnaval e achamos que todo mundo que estava na montanha tinha ido embora. Há dois dias não encontrávamos com ninguém a não ser um ou outro bovino que, surpreendentemente pastava a mais de 4.000 metros de altitude. Ainda fico intrigado como os bois do vale da Laguna Verde chegaram ali, até então eu só tinha conhecimento de bodes e cabritos escaladores…
Fui atrás de Emília sem nem me lembrar de colher alguma água. Depois da Laguna El Suero, nós não encontráramos mais pontos de água até aquele charco. Após uma ou outra mergulhada na lama até a canela, salva pela polaina de ser empapuçada, o caminho começava a subir de forma íngreme.
Nesse momento eu já caminhava à frente, irritado pelo fato de achar que estávamos indo rumo à estação do teleférico de Mérida, que eu esperava encontrar a qualquer momento, no final desta subida. Eu já contava com duas hipóteses, a primeira, a que eu estava mais inclinado, era de desistir do Pico Bolívar, ante a animosidade surgida na nossa dupla. A segunda era de ainda escalá-lo, mas partindo do teleférico e não do Lago Timoncitos, que eu acreditava já ter ficado para trás. Mas, uma hora depois, eu começava a me preocupar com outras coisas. Já eram cinco e dez da tarde e não chegávamos a lugar nenhum.
A subida terminara e eu estava em uma grande área rochosa plana. À minha direita, uma montanha que me lembrava o Agulhas Negras e eu supunha ser o Pico Bolívar. Próximo a mim, um poste de madeira ao lado de uma bifurcação no caminho dava a entender que possivelmente ali já houve uma placa pregada. Este outro caminho saía perpendicularmente na direção do pico rochoso. Tava na cara que aquela era uma das rotas para o Bolívar. Eu precisava decidir se continuava ou parava por ali. Enquanto Emília Takahashi não chegava, depositei minha mochila numa bancada de pedra e fui inspecionar o local. De início, continuei pelo caminho para ver o que havia depois de uma curva, 50 metros à frente. Desanimei. Para quem esperava ver o teleférico, só avistei mais caminho descendo, subindo uma encosta e desaparecendo após um morro. Uma nuvem branca tapava qualquer outra coisa que não fosse isso. Voltei para onde estava minha mochila, desta vez procurando um espaço no solo que não fosse de pedra e irregular para armar a barraca, caso decidíssemos ficar ali. Emília chegou como que cinco e meia e se livrou da mochila no chão para descansar um pouco. Tentei explicar brevemente a situação para ela, mostrando nossas opções, certo de que ela fosse preferir acampar por ali mesmo. Mas foi talvez uma coisa que eu disse que a tenha motivado continuar:
“… de acordo com o mapa, devemos estar a uns quinhentos metros para aquela direção da estação do teleférico…”
– Então vamos continuar! – Disse já colocando a mochila nas costas e dando os primeiros passos.
Surpreso, eu não estava nada animado por correr o risco de ser pego pelo escuro da noite, que chegaria muito breve, no meio de algum lance perigoso, como os que havíamos estado naquele dia.
– Eu vou ficar aqui mesmo! – Falei isto já indo buscar minha mochila e levando para um local onde imaginei ser mais confortável para armar acampamento.
Neste momento, deu-se início a mais ferrenha discussão até então. Emília me acusou de estar fazendo pirraça. Eu tentava convencê-la de que seria arriscado continuar naquele avançado da hora por um caminho que desconhecíamos. Emília argumentava que estávamos a 4.500 m de altitude e morreríamos de edema sem água. Perguntei se ela estava sentindo algum sintoma de mal da altitude, como dores de cabeça e ela afirmou sem muita convicção que sim. Lágrimas rolavam e ela me implorava que não ficássemos ali. Eu me sentia como se tivesse decretado sua pena de morte. Disse a ela que poderia ficar com toda a minha água, eu ainda possuía uns 300 ml e muitas frutas. Acredito que ela não tenha entendido nem dado importância pra este detalhe das frutas, eu não tinha contado que catara tantas frutas e legumes no último acampamento e agora não conseguiria explicar em meio ao calor daquela discussão. Outro argumento que usei foi de que se passássemos realmente mal por causa da água, ainda poderíamos voltar meia hora ou uma hora descendo até o charco pelo qual passamos. Para frente desconhecíamos o caminho e se havia realmente pontos de coleta de água.
Enquanto discutíamos, eu já quase terminava de armar a barraca, fixando os últimos ganchos do sobre-teto e acho que isto desesperava ainda mais Emília. Em sua cabeça, passar a noite ali sem água seria a morte certa, mas ela se via obrigada a isso pelo fato de só haver uma barraca. Eu ainda tentei argumentar que aquele clima era muito mais úmido do que o dos Andes na região do Aconcagua, onde ela havia estado em janeiro. Tentando por um fim naquele inferno e imaginando que ela não fosse aceitar minha oferta, cometi o erro de dizer que ela então poderia partir sozinha, levando a barraca pois eu faria um bivaque, dormindo ao relento com o meu saco de dormir. Ops! Mas eu não estava com meu saco de dormir! Eu viajava com um saco dela, de penas de ganso, que era mais leve e não tão quente. Mais apropriado para aquele clima. O meu saco de dormir fora confeccionado por mim na ocasião para o Aconcagua, e era muito mais pesado, recheado com pluma sintética, além de ser coberto por ripstop resistente á água. A pluma ou pena de ganso perde parte de sua propriedade isolante quando úmida e me lembrei que nevava e chovia todas as noites. Mudei de idéia rapidamente, mas já era tarde. Emília já rodeava a barraca sacando todos os specs e tomando o sobre-teto nos braços.
Tentei impedi-la de continuar desmontando a barraca, segurando também uma ponta da lona que ela agora prendia nas mãos e começamos a brigar ridiculamente por partes da barraca que inocentemente sofria estrangulamentos e puxões numa espécie de cabo de guerra. Noutro momento, tropeçamos e rolamos no chão sem soltar o nylon laranja da pobre barraca. Num flash de lucidez consegui me transportar para fora daquela situação deplorável e clamei para Emilia ver a que ponto chegávamos e pararmos com aquilo, afinal estávamos sozinhos num ambiente rigoroso. Nossa segurança dependia de alguma sensatez. Não estávamos discutindo para decidir que programa urbano de final de semana faríamos.
Não adiantava, eu não via solução para aquele impasse e eu começava a me preocupar com a luz do dia que se esvaía e com a barraca que seria despedaçada a qualquer momento. Tentei desempatar aquela disputa de alguma forma e argumentei que eu havia organizado a expedição, eu tinha mais tempo de montanha, eu era o mais idoso e até que era o mais forte! Tentava de algum jeito agregar peso ao meu voto por não continuar. Emília continuava se agarrando numa ponta do sobre-teto enquanto eu segurava a outra.
Talvez por minha forma estranhamente calma e racional de dizer que se aquilo continuasse, eu partiria para agressão física, eu não tenha convencido Emília e esta tenha ficado realmente surpresa quando desferi um tapa no seu capacete.
E infelizmente foi somente isto que pôs fim à peleja. Funcionou como um tiro disparado para o alto no meio de um tumulto. Emília não disse uma palavra e partiu com sua mochila. Eu ainda esperava que ela voltasse algumas dezenas de metros depois, mas meu tapa doeu mais no seu orgulho do que na minha mão…
Terminei de armar a barraca e fui tentar avistá-la. Consegui identificar a sua figura já desaparecendo na escuridão e neblina enquanto terminava de galgar a encosta.
Naquela noite foi difícil dormir. Me senti mal por estar confortável e quente, com alguma água e comida enquanto ela provavelmente estivesse ao relento, somente com algumas barrinhas de cereal e sem água, como ela dizia. Pensamentos me assombraram a noite toda. Imaginava o que teria acontecido à menina, escutava ruídos ao redor da barraca e imaginava que fosse ela voltando, arrependida ou enlouquecida para me atacar com o piolet! E se acontecesse alguma coisa com ela? Teria eu agido corretamente ou devia ter travado outra batalha para impedi-la de partir? Teria eu esse direito? Um dos motivos que me fizeram brigar pela barraca era também porque esta era uma forma de tentar impedi-la de continuar. Se ela desaparecesse aquilo me perturbaria a vida toda. Ao tentar imaginar como seria o caminho pela frente eu me lembrava dos lances arriscados por que passei ao longo do dia. Só consegui relaxar e dormir, próximo de amanhecer.
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