A travessia que virou escalada
Na manhã do quarto dia, não acordamos tão cedo e nos preparamos sem pressa. Neste dia, faríamos uma travessia até o próximo acampamento, que seria no Lago Timoncitos. A distância neste dia era a menor de todas e olhando para a carta topográfica de escala 1:50.000, o caminho parecia ser simples, na maior parte seguindo uma curva de nível no relevo, com exceção do primeiro passo – passagem utilizada para vencer uma cadeia de montanhas – e não esperamos maiores dificuldades. Emília já vinha carregando a pesada corda de 70 metros e ofereci para carregar um saco cheio de comida liofilizada que ela também trazia na sua mochila.
Emília terminou de se aprontar e começou a andar primeiro enquanto eu terminava de fechar a mochila. Instantes depois eu já caminhava também. Em poucos minutos, eu alcançava a outra área de acampamento, onde no dia anterior, o venezuelano que conversou conosco esteve acampado. Desta vez não encontrei ninguém, o local estava vazio. Emília já havia passado por ali e não parou. Eu resolvi dar uma investigada no local e descobri que a turma que lá acampara, havia deixado lá vários mantimentos entocados embaixo de pedras. Protegidos do sol desta forma, os alimentos se conservam no clima frio como se estivessem na geladeira. Eu e Emília achávamos que tínhamos trazido pouca comida e estávamos preocupados com isso. Resolvi então me precaver, catando o que fosse possível. Encontrei meia dúzia de tomates, duas cebolas, maracujá, limão, lata de molho de tomate, de leite condensado e coloquei tudo na mochila. Perdi vinte minutos neste reabastecimento e só voltei a encontrar com Emília no Lago El Suero. Ela não deve ter entendido minha demora, mas preferi esperar para fazer uma surpresa no jantar com o que eu havia conseguido.
De onde nos encontrávamos a canaleta de cascalho e terra que escorria do alto parecia uma parede. Depois de alguns minutos estudando o local e tomando fôlego e coragem, seguimos por uma trilha que foi serpenteando ao lado da língua de cascalho até desaparecer, dando a entender que teríamos que seguir pelo penoso terreno inclinado de pedras soltas e terra fofa. Procurávamos identificar alguma trilha de terra pisada, mas em vários momentos nos víamos em situações delicadas nos equilibrando com o auxílio dos bastões, distribuindo o peso cuidadosamente entre os quatro pontos de apoio e concentrados na pisada para não escorregar e rolar uma ou duas centenas de metros. Começamos a encostar na lateral direita daquela canaleta para tentar fugir do meio que era mais exposto, mas aí começamos a encontrar blocos maiores de rocha que nos desgastava com estes trepa-pedras. Próximo a um grande bloco, paramos para descansar num local um pouco mais protegido de um possível escorregão. Neste local, avistei um grande totem num platô de rocha metro e meio mais acima, na borda da canaleta. Aquilo era a possibilidade de sair daquela canaleta maldita. Mas seria este o caminho correto? Após uma breve dúvida, decidi investigar. Escalei o balcão e alcancei o platô. Ali, ao lado do totem, eu procurava o caminho ou outra marcação. Emília me seguiu e avistei outro totem, mas desta vez, a escalada não estava tão fácil. O totem estava a uns quatro ou cinco metros acima de minha cabeça e para alcançá-lo, nada de boas agarras como até então tínhamos. Dei duas passadas e nem alcancei o montinho de pedras. Resolvi descer. Aquilo estava ficando muito íngreme e arriscado. Apesar de este totem me observar imperativamente, duvidei de que aquele fosse o melhor caminho, ou mesmo um caminho. Emília seguiu pelo platô que se estreitava até ficar da largura de um parapeito. Era assustador vê-la seguindo pelo estreito caminho onde precisava ficar rente a parede, usando as mãos nas agarras e seguir de lado, com o mochilão no vazio. Ainda mais sem saber se haveria caminho. Quando se distanciou uns quinze metros, gritei perguntando se havia totens. Emília confirmou que dava para seguir por ali e avancei no trecho horizontal. No meio da passagem, um desnível de meio metro tornava aquela tarefa mais desconfortável. Ao fim do parapeito, Emília já avançava, desta vez para cima, galgando umas barrigas de pedra. Este novo trecho era mais fácil, com um ou outro pequeno platô entre os lances mais curtos de escalaminhada, mas nada que segurasse de uma queda de centenas de metros caso escorregássemos. E esta angústia se acentuou quando começou a nevar. A neve derretia em contato com a rocha, tornando-a molhada e estar ali no meio daquele mar de pedra com uns cinquenta metros ou mais ainda para cima me deixava preocupado. Pensei em utilizarmos a corda, subindo unidos a ela, mas não havia bicos de pedra ou saliências que pudéssemos usar para proteger. O jeito era continuar subindo, antes que aquilo tudo ficasse molhado demais. O que mais assustava era o fato de que subíamos sem ter certeza de que lá no alto encontraríamos uma saída. E se aquele não fosse o caminho da travessia? E se estivéssemos numa rota de escalada de outro pico? E se o caminho certo continuasse pela canaleta de cascalho? Alguns sinais nos faziam crer que ali pelo menos passara alguém.
À medida que nos aproximávamos da crista, o caminho perdia inclinação. Chegamos à base de um espigão rochoso de formas agressivas, apontando para o céu nublado. Neste momento, a neve deu uma trégua. Mas se agora tínhamos certeza de que seguíamos um caminho mais demarcado e já com alguns totens, por outro lado a tensão continuava, pois freqüentemente nos víamos caminhando em solo arenoso e escorregadio a poucos centímetros de despenhadeiros. Nestas horas o bastão era imprescindível, mas logo vinha um trepa-pedra e o jeito era escalar com os bastões pendurados no pulso. E, vez ou outra, nos víamos em situações difíceis por causa disso. Numa delas, eu vinha na frente e o caminho pisado terminava numa pequena canaleta rochosa de uns três metros de altura. O problema é que pra baixo ela continuava por uns 300 em forma de uma parede de cascalho de uns 70 graus de inclinação. Subir por esta canaleta não seria difícil, ela tinha a largura menor do que minhas pernas abertas e várias agarras e saliências nas suas paredes que também funcionavam como degraus. Subi com extremo cuidado, testando a aderência da bota e cada agarra antes de apoiar o meu peso. Era preciso estar extremamente consciente dos meus recursos e limitações naquela hora. Compensava o desequilíbrio da mochila e atentava para a posição que o bastão tomava em cada movimento dos meus braços, para que no próximo, eles não se prendessem de alguma forma. Apesar de fácil, aquele local não admitia erros. Com um pé em cada lateral da canaleta, quase como numa chaminé, numa das passadas, a ponta do bastão de trekking entrou no laço do cadarço da bota esquerda. A situação era das piores. Não dava para forçar, pois o nó era duplo e não se desfaria. Eu não podia usar o braço do bastão para tentar ajeitar a confusão, pois eu dependia inteiramente dos meus três apoios restantes. A única solução era prolongar por mais tempo o esforço de ficar naquela posição, que inicialmente duraria um segundo, enquanto eu tentava voltar o filme em câmera lenta, desfazendo o movimento de forma idêntica a que eu fiz. Isso geralmente dava certo e deu. Já havíamos estado neste tipo de situação anteriormente por pelo menos uma vez cada um, mas quando pensávamos em guardar os bastões na mochila, em outro trecho delicado eles se mostravam importantes. Pedi cautela para Emília neste ponto, e após alguns metros, alcançávamos a passagem mais alta daquela cadeia de montanhas. De um lado, podíamos ver o imenso vale por onde viemos, onde estava a Laguna Verde lá longe, no final, com todo o corredor de montanhas. Do outro lado, outro vale maior ainda que descia indefinidamente e finalmente o caminho que seguia a curva de nível. Estávamos entre dois montes de pedras e o vento era canalizado, mas não estava frio. Ao sentarmos para descansar, a observação de Emília se fez minha também:
– Aterrorizante!
Estávamos ainda muito assustados com o caminho e com a adrenalina correndo a mil nas veias. Eu já havia passado por lugares muito mais simples que aqueles e que foram protegidos por cabos de aço ou cordas. Mas até então nem um grampinho na rocha encontramos. Só queríamos agora uma descida mais tranqüila pelo outro lado.
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