O Pico Humboldt
No dia seguinte, acordamos e iniciamos os preparos para a escalada do Pico Humboldt. Os guarda-parques nos aconselharam a escalar o Humboldt pela rota normal, começando por uma outra laguna mais a frente chamada El Suero e descê-lo pelo glaciar em linha reta para o nosso acampamento. Este último caminho seria muito rápido e simples. Caminhamos alguns metros e encontramos o pessoal que estava nas barracas mais a frente e fomos em sua direção. Um deles fotografava do lado de fora da barraca e conversou conosco. Disse que escalaram o Humboldt no dia anterior e agora se preparavam para descer a Tabay. Não soube dar muitas informações do caminho, somente que passaríamos por duas gargantas assustadoras… Agradecemos e continuamos.
O caminho vai fazendo uma curva à esquerda a medida que sobe. No conjunto montanhoso que contornávamos, Emília apontou uma cachoeira e disse que o caminho podia ser por ali. Observei o que ela apontava e não consegui distinguir nenhum local que pudesse ser caminho.
– Ali é uma parede!
Uns quarenta minutos depois chegávamos à Laguna El Suero. Começamos a analisar todas as probabilidades de caminho e só encontramos um, uma garganta de terra e pedras soltas íngreme. Começamos a subir pela rampa de cascalho e deixei Emília ir na frente, uma vez que as pedras que o primeiro soltava, rolavam perigosamente no segundo. Vez ou outra me abriguei atrás de um grande bloco, protegendo-me, antes de continuar a subir.
Emília já ia mais acima quando avistei um belo totem à esquerda, indicando um local de saída daquele suplício. Para chegar até ele, precisei cruzar um trecho onde a rampa era muito íngreme com algumas dezenas de metros de queda para baixo. Cheguei a tirar o piolet para cravar na terra de forma que eu pudesse sentir um pouco mais de segurança. Gritei para Emília que procurasse uma saída também mais acima. Desta forma, alcançamos um caminho rochoso que descia rumo ao imenso campo de pedra, cuja forma, de longe, se assemelhava a um papel alumínio amassado aberto gigante. E nós, micróbios, perambulávamos agora em meio a infinitas dobras, descobrindo totens que indicavam um caminho naquele labirinto de ondulação de pedra.
Chegamos a um bonito lago de cor verde esmeralda que nos recepcionava daquele “andar”. Cortamos todo o campo rochoso e, no lado oposto, começava agora uns lances de escalada numa rocha mais lisa, sem agarras, após uma canaleta.Tentei primeiro subir por um trecho mais protegido de uma grande queda, mas que se mostrou mais difícil e eu não consegui. Emília, impaciente, não esperou e subiu simultaneamente um pouco mais na beira, o que resultaria numa queda de uns cinquenta metros, caso escorregasse. Segui seus movimentos, enquanto recebia críticas do modo como eu apoiava o pé:
– Você está pensando que está escalando! Apoie a sola do pé inteiro, não somente a ponta da bota!
– ?
Eu poderia tentar explicar que com aquela bota rígida eu não conseguia dobrar o pé e o tornozelo como a dela e etc, mas, já tenso com a escalada, só consegui pensar em um grosseiro: “Fica na tua!”
Mais acima, Emília, que ia na frente, começou a galgar outro desmoronamento de terra e pedras bem íngreme rumo a uma crista. Eu vinha mais abaixo tentando dar um passo e escorregando dois. Emília finalmente alcançou a crista e gritou dizendo que o caminho não era por ali. Do outro lado havia um abismo. Duas massas de rocha impediam que ela pudesse seguir pelo topo da crista. Conseguia avistar o Pico Humboldt de lá e avisou que iria descer. Olhei para os lados então e encontrei um totem à direita e gritei para ela. Poucos metros acima de mim, havia um bloco de pedra do tamanho de uma pessoa, parecendo firme, com uma fita de escalada amarrada em volta. Imaginei que fosse usada para fazer um rapel, descendo pela rampa e pelo lance de escalada. Me solterei na fita, aguardando Emília descer, uma vez que ela estava com dificuldades para desescalar e ficava nervosa esboçando alguns soluços.
Pegamos o caminho indicados pelos totens e alcançamos a crista, mas desta vez, nada mais estava entre nós e o glaciar da base do cume do Pico Humboldt, a não ser blocos menores, que conseguíamos transpor cuidadosamente para não escorregar pelos abismos laterais.
Chegamos na borda do glaciar, nos encordamos e instalamos os crampons nas botas. Em torno de vinte minutos, cruzamos o belo tapete branco e alcançamos as rochas que pontilhavam na base do cume rochoso em formato de barbatana. Descalçamos os crampons e deixamos o material que não utilizaríamos, inclusive a mochila com a corda, uma vez que a crista pela qual alcançaríamos o topo não parecia ter maiores dificuldades. Começamos a subir, por vezes beirando alturas consideráveis até alcançar o ponto mais alto.
Algum tempo antes eu havia combinado com Emília que se não chegássemos até as 15:30 no cume, nós voltaríamos, já que tínhamos todo um caminho desconhecido para a descida e o céu começava a ser tomado por nuvens cinzas. Agora estávamos felizes por terminar antes de nosso horário limite e tirávamos várias fotos.
Até começar a nevar.
Me dei conta que já era o bastante e aproveitei que eu estava com a máquina de Emília nas mãos e a guardei em sua capa que eu também trazia comigo para aliviar Emília do volume incômodo.
– Chega de foto, esta na hora de descer!
Emília ficou brava com o fato de eu impedi-la de tirar mais fotos e discutimos brevemente antes que ela iniciasse a descida na frente se distanciando em silêncio sem proferir nenhuma palavra comigo. Passei um certo desconforto caminhando por uma borda estreita e abaulada, que, já molhada pelos flocos que derretiam em contato com a rocha, não me deixava abstrair um vazio de algumas dezenas de metros ao lado.
Ao chegar no local onde deixamos as mochilas, discutimos um pouco mais. Emília achava que alguns minutos a mais no topo não fariam diferença alguma e só queria tirar mais uma foto. Retruquei que uma fração de segundo pode determinar um acidente. Um minuto ou dois de neve mais intensa poderiam nos fazer escorregar numa das rampas ou bordas que passamos com o gelo acumulado. Se ao menos tivéssemos trazido a corda poderíamos enfrentar condições mais adversas até com mais segurança. No meio da discussão, usei como argumento também o fato de ter uma filha que dependia de mim. Emília falou pra eu não apelar.
Mas um dependia do outro para atravessar o glaciar, e continuar por ele descendo uma certa distância rumo ao nosso acampamento e nos encordamos.
Tomamos a direção mais a direita e passamos do ponto onde, na vinda, iniciamos. Agora o glaciar começava a tomar um bela inclinação para baixo e eu vinha mais atrás, atento a qualquer escorregão. Havia um leve rastro na neve e pedi que Emília, que ia à frente e mais abaixo, se mantivesse nesta linha para que fosse mais fácil descobrir o caminho pelo campo rochoso no final do glaciar. Mas as marcas caíam para a esquerda, num ponto onde a inclinação aumentava e nova discussão se fez quando Emília preferiu seguir reto.
Terminávamos o glaciar e imaginei quão interessante seria este outro caminho, se utilizado na subida. A neve apertava e tínhamos um caminho desconhecido pela frente. Emília partiu na frente, descendo e seguindo totens. Este novo trecho lembrava um tobogã gigante com suas ondulações petrificadas, mas sem maiores dificuldades comparado ao outro caminho que usamos para subir. Em determinado ponto, realmente desci como num tobogã, escorregando pela pedra lisa e molhada em uma rampa de dois metros.
Não havia dificuldade, bastava seguir o gigantesco leito do glaciar em linha reta para baixo e acompanhar a transformação do terreno. Primeiro, o manto rochoso deu lugar a um leito pedregoso com grandes rochas soltas que tornavam o caminhar por elas um martírio e, em certo ponto, com algum risco, uma vez que pisávamos em grandes rochas que se movimentavam com instabilidade. Neste momento, ultrapassei Emília, que diminuia seu ritmo. Fugindo do terreno de pedras soltas, procurei um campo da vegetação de folhas de fleece. Estas agora possuíam um porte bem maior e desenvolviam hastes com uns dois metros de comprimento, onde brotava uma estranha flor. Naquele cenário, onde a neblina havia preenchido a atmosfera, com aquelas estranhas plantas e a pouca luz do dia que findava , eu me sentia explorando um planeta alienígena. Mas não me importava com o avançado da hora, pois a neblina não me deixava ver muito além e a impressão que eu tinha era que a qualquer momento encontraria a trilha no fundo do vale da Laguna Verde, que nos levaria ao nosso acampamento.
Fui assim despreocupado, até começar a distinguir um barulho de água. Ou pior: cachoeira! Eu chegara no topo da cachoeira que avistamos lá de baixo, quando passamos rumo ao Humboldt. Caminhei até a beira para me certificar e senti um misto de revolta e medo. Já me imaginava quase dentro da barraca e agora tinha que aceitar a possibilidade de um bivaque sem saco de dormir e todo molhado num lugar que sempre nevava ou chovia no fim do dia. Toda uma noite de frio e perrengue passou diante de meus olhos em um segundo. Devia ser umas 18:20, não tínhamos muito tempo pra pensar e precisávamos agir rápido. Aguardei Emília se aproximar e gritei:
– Ferrou Emília! Chegamos no topo da cachoeira!
Emília, percebendo um tom meio assustado na minha voz, pediu que eu ficasse calmo. Falei para Emília procurar algum caminho do lado esquerdo da margem e eu, que estava mais próximo do rio, o atravessaria e procuraria do outro lado. Ao cruzar o rio, pisei numa pedra escorregadia e tomei um belo tombão, com um bonito rodopio carpado latitudinal e quase mergulhei de ponta cabeça numa piscininha. Levantei surpreso por não ter me machucado, afundando os pés até o joelho na água no riacho e segui um caminho pisoteado que parecia continuar na outra margem. Olhando mais ao longe, eu conseguia ver o perfil do terreno e ele parecia virar uma rampa mais suave. Talvez aquele caminho fosse mais fácil, até porque parecia que adentraria uma florestinha, e provavelmente fosse mais abrigado de pirambeiras.
Gritei a Emília que achara um caminho e não pude entender o que ela falava ao longe. Quando ela se aproximou, tentamos seguir pelo caminho que encontrei, mas alguns metros depois ele desapareceu, demonstrando ser apenas marcas de pisoteamento de outros que, como nós, procuraram erroneamente uma saída por aquele lado. Emília explodiu dizendo que eu só fazia o que eu queria e não a escutava. (!) Perguntei se ela tinha achado algo do outro lado.
– O carinha da Laguna Coromoto disse que o caminho era pela esquerda da cachoeira! – Esbravejou irritada.
Emília se referia a um grupo que encontramos no início do segundo dia e que conversaram em espanhol, enquanto eu filmava distraidamente.
Naquele momento fiquei triste com o rumo que aquele desentendimento tomava e comecei a aceitar desistir da escalada do Pico Bolívar. Não seria nada agradável escalar uma montanha com aquele clima e aquela rixa que se formava. Podia até ser perigoso, como mais tarde constatei.
A escuridão da noite chegou indiferente aos nossos problemas. Emília tomava a frente e descia por um caminho pisado na direção que ela havia tomado anteriormente. Eu precisava encontrar minha lanterna dentro da mochila e já que havia escurecido mesmo, aproveitei para ingerir alguma coisa e tentar reunir um pouco mais de energia para expulsar o desânimo e todo um cansaço de um dia inteiro de atividade. Emília gritou alguma coisa lá de baixo que eu não compreendi. Devo ter gritado perguntando se havia caminho mas também não entendi nenhuma resposta e iniciei a descida. O caminho serpenteava entre tufos de mato e pedras e logo se revelava bem pisado e marcado. Um trecho horizontal e estreito exigia certo cuidado, mesmo sem conseguir ver a altura da queda por causa da escuridão. Mais abaixo uma desescalada de uma parede com uns cinco metros exigia mais atenção e finalmente terminava. Caminhamos vinte minutos em silêncio até o acampamento e dormimos sem nem jantar.
Um comentário em “A Escalada que Virou Travessia”