A primeiradificuldadefoidecidiraondeir no feriado de carnaval. Normalmentecincodiassãomais do quesuficientesparacurtirumaviagem. Masnãoumaviageminternacionalcujoobjetivoseriasubirumaaltamontanhaqueexigisseaclimatação. Era issoqueeuqueria. Masaoconversar com Emilia, queacabava de voltardatemporada 2008/2009 do Aconcagua, ouvi:
– Alta montanhanão! Queroalgomais light! Chega de sofrimento!
Meuargumentoéquepraelatalvez fosse maistranqüilo, umavezqueelajávinhadestaexperiênciarecente com altitude. Jáeu, esperava me ferrar um poucomais, poisvinha de um períodosematividadefísica, me recuperando de umatorção no tornozeloque me deixou de gesso umasemana…
Emilia queria fazer a Travessia do Gelo Continental Sul.
Fui pesquisar sobre esta “travessia-passeio”…
A travessia do gelo continental atualmente é feita em aproximadamente cinco dias, contornando o maciço de montanhas da qual faz parte o seu mais famoso pico: o Fitz Roy. Ela percorre uma pequena parte do desafio original que é cruzar a placa de gelo completa de norte a sul num dos trechos mais inóspitos do planeta, com logística comparada ao das travessias polares com possibilidade de tempestades, ventos de 100 quilômetros por hora e temperaturas glaciais. Não teríamos tempo para reunir o equipamento específico pra essa empreitada e chegar ao fim do mundo que é a Patagônia, aquilo exigia muito mais planejamento e talvez umas férias de uns 15 dias. Muito contra a vontade, Emília aceitou meus argumentos e buscou alternativas. E o Pico Bolívar se tornou a melhor delas. Uma escalada em rocha de graduação fácil, mas para alcançar o mais alto ponto da Venezuela, a 5.007 m, no Início da Cordilheira dos Andes.
Em Guarulhos, onde fiz escala, passei muito mal por causa de uma maionese que comi em um restaurante do Galeão, antes de embarcar. Senti febre, dor de cabeça, dores no corpo e vomitei tudo que havia comido. Com medo de prejudicar minha escalada, procurei o posto médico do aeroporto e me colocaram no soro com medicação. Quarenta minutos depois, eu estava como novo outra vez.
Em Caracas, pegamos 12 horas de ônibus para a cidade de Mérida, com 1.630 m de altitude, na base da cordilheira. Na rodoviária, num posto de informações do governo, ouvimos aquela mesma conversinha de sempre:
– Não se pode subir o Pico Bolívar sem guia.
Esta informação nos dava a entender que não era permitido, mas na sede do Parque em Tabay, não tivemos problema nenhum ao mostrarmos nosso equipamento e contarmos nosso objetivo. Obrigatório são os apetrechos de escalada: corda, capacete etc. Isso nós tínhamos, e um pouco mais. Pagamos a taxa diária de permanência no parque e colhemos informações valiosas, além de comprar a carta topográfica do parque por algo como cinco reais.
Mérida é conhecida como a cidade que abriga o maior teleférico do mundo. Ele sai de 1.607 m chegando a 4.500 m de altitude. Se fossemos de teleférico, corríamos o risco de passar mal com a altitude repentina, mas poderíamos poupar três dias de caminhada ida e volta. O problema é que a estrutura não funcionava mais desde julho para reforma. Agora éramos obrigados a subir até a altitude de 4.200 em dois dias de caminhada.
A trilha inicia na sede do Parque Nacional Sierra Nevada no Município de Tabay, alguns quilômetros depois de Mérida. Na cidade, antes de pegar a Toyota-lotação para a sede do parque, como último recurso, corri numa farmácia para tentar comprar algum combustível, pois eu já havia percorrido todas as lojas de ferragens ao redor, procurando benzina e não achara. Comprei álcool isopropílico.
Agora caminhávamos numa trilha com forte subida, rodeada de densa vegetação tropical tendo um lago como objetivo para esse primeiro dia, onde acamparíamos a 3.300 m.
A noite caiu e ainda caminhávamos. Escurecia por volta de 18:40 h e havíamos começado a caminhar tarde, algo próximo de 14:00 h. Usávamos os altímetros do meu relógio e do GPS de Emília como referência e, mesmo faltando um pouco pra chegar a altura da área de acampamento, resolvemos parar na clareira que encontramos ao lado de um pequeno laguinho. Se não fosse, aquele lago passou a ser, por uma noite, a Laguna Coromoto. Nós dois estávamos exaustos com o peso dos equipamentos de neve e escalada e decidimos com facilidade por parar ali.
O álcool isopropílico se revelou uma porcaria pra cozinhar no meu fogareiro MSR, foi preciso algum tempo até conseguirmos um método que funcionasse. O fogareiro espirrava um monte do combustível, que derramava e apagava toda hora.
No dia seguinte, após alguns minutos de caminhada, chegamos à verdadeira Laguna Coromoto: dois lagos encostados a uma parede rochosa ligados por um estreito canal e cercados de muito verde.
Beiramos o lago pelo lado esquerdo e continuamos pelo caminho que se transformava com a vegetação mais rasteira e com o predomínio de rochas. Logo estávamos galgando uma rocha aqui e outra ali como num imenso leito de rio seco. Apareceu também uma espécie de vegetação que permaneceria por quase todo o caminho acima dos 3.000 m, era um tufo de folhas esguias de cor amarelada que possuíam densa camada de pelos, cobrindo-a inteira como um veludo. Brincamos que ela usava agasalho de fleece.
Neste dia encontramos vários grupos descendo em sentido contrário, mas nenhum subindo.
Cruzamos uma espécie de passarela estreita de metal e madeira cravada numa parede de rocha. Mais adiante, em um trecho com um lance de escalada, precisamos transpor uns seis metros de uma parede rochosa para continuar o caminho. Na metade, me vi numa situação difícil e sem força para puxar o meu peso mais o da mochila para completar o lance e imaginei que teríamos que passar as mochilas depois. Deixei a mochila no platô em que eu me encontrava e consegui escalar este trecho com facilidade, quando desta vez me utilizei de uma agarra que eu não vi de primeira.
Emília ficou com a difícil tarefa de erguer a minha pesada mochila, passando-a para mim e reclamou do fato de eu não ter trazido-a comigo. Subiu com facilidade com sua mochila nas costas mesmo, utilizando a agarra e os bastões.
Mais alguns trepa-pedras depois, chegamos à espetacular Lagoa Verde. Um imenso lago rodeado de grandes porções rochosas e com o Pico Humboldt ao fundo, com seu glaciar que o abraça a alguns metros abaixo do cume rochoso.
O Pico Humboldt é o segundo pico mais alto da Venezuela com seus 4.940 m e, como ele estava ali no nosso caminho, não poderíamos perder a chance de escalá-lo também.
Aquele lugar estava se revelando espetacular para mim, com muito verde e lindos lagos, totalmente diferente do terreno árido que eu esperava encontrar, já que estaria nos Andes.
Continuamos andando, procurando um lugar melhor para montar acampamento e subimos uma encosta, acompanhando a trilha. Num determinado lance, senti dificuldades num trecho mais perigoso onde Emília passou com facilidade. Comecei a atribuir esta dificuldade ao peso da mochila e à bota rígida nova que eu estava usando e que eu ainda não estava totalmente familiarizado. Emília usava uma bota de trekking e eu usava uma Quechua modelo Byonassay com encaixe para crampons automáticos.
Chegamos num largo campo ainda no mesmo vale onde repousava o imenso lago e tivemos uma surpresa: próximos a algumas barracas, bovinos pastavam tranquilamente a 4.000 m de altitude.
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