Tem sempre um momento que eu me dou conta que a aventura realmente começou. Desta vez foi quando o ônibus da Viação Expresso Uspallata partiu e me deixou com a pesada mochila de frente para o acesso ao Parque Provincial do Aconcagua, na Rota 7, rodovia que liga Mendoza, na Argentina, a Santiago do Chile, cruzando a Cordilheira dos Andes.
O sol abrandava o frio da manhã e o vento alastrava a poeira marrom por toda a parte.
À minha volta, gigantescas montanhas. Parte do meu objetivo se mostrava na direção norte: o Monte Aconcagua.
Coloquei nas costas os 50 kg que pesavam minhas duas mochilas acopladas e tomei minha direção. Ainda teria dois quilômetros até a entrada do parque, onde eu faria meu check-in.
Nunca tinha caminhado com tanto peso, nunca tinha tentado subir tão alto. Muita coisa seria novidade pra mim dali pra frente e isto era o mais interessante.
Confiava somente que pudesse ter me planejado e preparado da melhor forma ao longo dos últimos doze meses. Mas evidentemente tinha um monte de incertezas rondando os pensamentos.
Aguentaria o saco de dormir que eu costurara e nem ao menos tive como testar? Calça, polainas. A barraca nacional? O casaco que reforcei? Os óculos que adaptei? O que eu alugara bastaria? Enfrentaria eu sozinho alguma séria dificuldade?
Até ali, parecia estar tudo correndo bem, o avião não atrasara tanto em época de crise de aviação, em Mendoza gastei um pouco mais do que calculara, mas estava tudo dentro do planejado. Somente o peso da mochila tinha excedido em muito e que imaginei quando juntei as compras e o material alugado. Dos 35 que já me assustavam, o peso foi para 51 quilos. No segundo hotel que fiquei, larguei meio quilo de macarrão. Mesmo assim a balança da farmácia da rodoviária, onde entrei agachando para poder passar com a comprida mochila pela porta, marcava os assustadores 126 quilos quando subi. Eu apertava a cinta abdominal para aliviar o peso esmagador dos ombros e caminhava de um guichê a outro procurando o Expresso Uspallata para me deixar em Puente Del Inca.
Puente Inca fica a 5 km da entrada do Parque, a 2.700 m de altitude, tem esse nome por causa de uma formação rochosa natural em forma de ponte e que dizem ser usada no passado pelos Incas para transpor o violento rio.
Lá passei uma noite para começar a aclimatação.
Para preencher o tempo e dar aquele “ânimo” o pessoal costuma visitar o Cemitério dos Andinistas em Puente del Inca. Uma das primeiras placas que vi foi do Mozart Catão, brasileiro que pereceu na face sul do Aconcágua em 1998. Passei muito tempo lendo as mensagens nas lápides e tirei muitas fotos.
No dia seguinte à visita ao Cemitério dos Andinistas, peguei um ônibus que me poupou caminhar os três quilômetros até o acesso ao Parque. Mais dois km e cheguei à entrada, onde fica a cabine dos guardas-parque.
Lá apresentei a permissão, que foi carimbada. Recebi o saco de lixo com o meu número. Deveria ser entregue na saída. E aproveitei para colher algumas informações sobre a temporada.
– Como estas la temporada, tiempo, clima? – Perguntei em meu rebuscado sotaque espanhol.
-Horrible!
-Horrible?!
-Si! Horrible, muy viento. Terrible, impressionante, muy feo, muy feo.
O vento foi realmente impressionante na primeira semana. E uma nuvem teimava em aparecer todos os dias no cume de meio-dia em diante.
Nesta primeira etapa, comecei a perceber que meu ritmo estava razoável e dentro da média indicada no mapa e placas. Apesar do trecho final, próximo ao primeiro acampamento que se chama Confluência, onde passaria a noite, ter sido um pouco mais cansativo por ser mais íngreme. Cheguei neste primeiro local com 4 ou 5 horas de caminhada. Um grande grupo passou por mim com suas pequenas mochilas e uma das últimas integrantes não resistiu e perguntou em espanhol o peso de minha carga. Com minha resposta, soltou uma exclamação e me comparou a um sherpa! Ainda bem que não foi com uma mula… Em matéria de peso, para ficar igual à mula, faltaram 10 quilos. O limite de peso para as mulas é de 60 quilos. Mas a diferença não é só esta, o trecho que levei 3 dias, elas fazem em algumas horas.
Em Confluência, ao me apresentar ao guarda-parque e mostrar minha nacionalidade, logo me apresentaram a dois outros brasileiros e cariocas que lá estavam também. O primeiro se chamava Antônio Borja, mais conhecido como “Wally” na comunidade montanhista do Rio. Experiente guia do Centro Excursionista Brasileiro e do Centro Excursionista Teresopolitano, tentava pela sua terceira vez alcançar o topo da tão almejada montanha. O segundo era o Cláudio Cunha, montanhista de forte constituição física, com algumas outras experiências em altas montanhas, convidado por Wally para esta expedição onde alguns outros participantes não conseguiram fazer parte, sobrando somente estes dois.
Entrevistei Wally e após breves vídeos, este me acompanhou à barraca do médico para os exames de praxe. Na porta da barraca havia uma fila com gente do mundo todo e com todo tipo de mal, dor de garganta, dor de ouvido e mais frequentemente, diarreia, por causa da água consumida ali. Na minha vez, fiquei feliz com os resultados, 88% de oxigênio no sangue e pressão sanguínea boa. O que levou o médico a perguntar se era eu um atleta. Wally me contou que não estava bem, chegara com uma taxa de oxigênio baixa e tinha muita diarreia e vômitos.
Montei minha barraca perto dos cariocas que me ajudaram a prendê-la com pedras, já que não se consegue enterrar os espeques no terreno rochoso. Naquela noite comecei a me preocupar seriamente com o vento. Passei a noite inteira temendo que minha barraca não o aguentasse, enquanto ela me açoitava violentamente me imprensando contra o chão por causa da força da ventania. Cobri o rosto por causa de punhados de terra que caiam na minha cara. De manhã havia uma camada de poeira laranja em tudo que estava dentro.
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